Glauco Mattoso, autor do poema Do decoro parlamentar
— O ilustre senador é um sem-vergonha!
— O quê?! Vossa Excelência é que é safado!
E os dois parlamentares, no Senado,
disputam palavrão que descomponha.
Um grita que o colega usa maconha.
Responde este que aquele outro é viado.
Até que alguém aparte, em alto brado
anima-se a sessão que era enfadonha.
Inútil tentativa, a da bancada,
de a tempo separar o par briguento:
aos tapas, se engalfinham por um nada…
Imagem sem pudor do Parlamento,
são ambos mais sinceros que quem brada:
— Da pecha de larápio me inocento!
O soneto Do decoro parlamentar é um dos cem poemas que compõem Poética na política (2004), de Glauco Mattoso, recordista mundial na produção de sonetos, ultrapassando em milhares o italiano Giuseppe Belli (1791-1863). A obra de Glauco é, pois, imensa, mas o solitário soneto em pauta pode dar uma ideia do tom com que ele a constrói. Esse tom, como se vê e sabe, é dissonante e radical, pertence ao coro dos descontentes, desafina o bom-mocismo comportado de grande parte da poesia brasileira contemporânea. Na verdade, o soneto acima é um dos mais bem comportados de sua lírica, que se filia a uma tradição (alternativa) que contempla e privilegia o escatológico, o coprofágico, o kitsch, o desagradável, o agressivo, o desviante, o diferente, o violento, trazendo, obsessivamente, temas incômodos: homossexualidade, cegueira, preconceito, miséria, corrupção e fetiches, entre eles, a atração física pelos pés alheios.
Os catorze versos do poema narram uma cena que, embora não devesse, se tornou corriqueira entre nós, que é a troca (pública) de insultos e palavrões entre políticos brasileiros, lembrando outros versos de Millôr Fernandes, uma das declaradas referências de Glauco: “Tivemos uma troca de palavras/ Mesquinhas/ Agora eu estou com as dele/ E ele está com as minhas” (datado de 1962, está em Papáverum Millôr, de 1974). Os rigorosos decassílabos heroicos, já pela harmonia e ordem rítmico-estrutural a que devem obedecer, entram em conflito com a desordem do quadro que se pinta, entre palavrões, gritos, brados e tapas. De modo similar, o jogo rímico regular (ABBA / ABBA / CDC / DCD) e as rimas todas consoantes ampliam o contraste da cena: sob a capa de um equilibrado soneto clássico, se testemunha uma despudorada cena de incivilidade, em que graves acusações (“sem-vergonha” e “safado”) se disfarçam, irônica e hipocritamente, em tratamento respeitoso (“ilustre senador” e “Vossa Excelência”).
As agressões se estendem e avançam para o que os parlamentares consideram uma injúria, quando se acusam de “maconheiro” e “viado”: aqui, preconceito e estereótipo se confundem, confirmando o despreparo cultural e intelectual da maioria de nossos políticos, que tantas vezes atuam como porta-vozes de pensamentos retrógrados e regressivos, como se fosse ofensa gravíssima o “outro” utilizar uma droga ilícita (embora muitas, como o álcool, sejam liberadas) ou preferir exercer uma sexualidade diferente da que tais parlamentares consideram “correta” (enquanto mantêm, às escondidas, relações opressivas e ofensivas). O “grito” — já por si um sinal de insuficiência de argumento — vira um “alto brado” coletivo, insinuando-se talvez aqui uma paródia ao “brado retumbante” de nosso hino, símbolo da nação que os políticos deveriam representar.
A “bancada” do verso 9 se transforma, via anagrama, em “cambada” num poema vizinho (Das analogias), confirmando o desapreço do poeta pela classe. O fecho surpreende, quando o poema afirma ser o “par briguento” mais sincero do aquele que diz de si mesmo: “— Da pecha de larápio me inocento!”. A desilusão quanto à honestidade das pessoas ultrapassa a classe política e se estende a todos, contaminados por atitudes nocivas ao interesse público.
Essa postura cética e mesmo melancólica quanto à justiça e à ética nas relações sociais atravessa toda a obra de Glauco Mattoso. A radicalidade das ideias e dos temas, a linguagem agressiva, a rebeldia constante parecem ser proporcionais à “Imagem sem pudor do Parlamento”. (Vale, nessa direção, reler a duríssima crítica de João Cabral às classes dominantes em seu Dois parlamentos, de 1960.) Em outros poemas de Poética na política, do “bardo revoltado” e engajado, a contundência do juízo contra os políticos se acentua: no citado Das analogias, o rancor chega ao ápice na sugestão de penas de morte a certos políticos: “Por ‘câmara’, a de gás melhor convinha/ a quem é deputado; a um senador,/ machado, como morre uma galinha!/// Dos outros dois poderes, o sabor/ de vê-los fuzilados se escrevinha/ ‘justiça executiva’, é de supor”. A reação feroz contra os políticos — esses “inimigos do povo”, em vez de “representantes” — atinge com frequência tais paroxismos, que, ainda que retóricos e poéticos, desvelam o imaginário popular em relação à combalida (no entanto, poderosa) classe política.
Em O que significa elaborar o passado (1963), Theodor Adorno explicita alguns conflitos entre a experiência da democracia e a frustração de seus objetivos sociais: “Justamente porque a realidade não cumpre a promessa de autonomia, enfim, a promessa de felicidade que o conceito de democracia afinal assegurara, as pessoas tornam-se indiferentes frente à democracia, quando não passam até a odiá-la. A forma de organização política é experimentada como sendo inadequada à realidade social e econômica”. Este sentimento de indiferença e mesmo ódio dos poemas de Glauco endereçados à classe política parece se alimentar dessa frustração, dessa “promessa de felicidade” não cumprida. Em Finado, dirá: “De inquérito que vale a comissão,/ se os próprios componentes no cartório/ têm culpa e rendem farta munição?/// Parece-me o Brasil, tendo quem chore-o,/ defunto, e seus políticos me são/ iguais às carpideiras num velório”. Ou seja, o país — defunto — está entregue àqueles que seriam os culpados pela própria situação de “finado” em que se encontra.
O poema Do decoro parlamentar e os demais citados têm a data de 2003, ano em que Fernando Henrique Cardoso encerra seu segundo mandato presidencial e Luiz Inácio Lula da Silva toma posse pela primeira vez. O clima político que dá ensejo e forma aos poemas de Poética na política vem desse passado próximo, que por sua vez traduz modos não éticos nem justos dos políticos brasileiros de décadas atrás, assim como de políticos brasileiros do presente conturbado que atravessamos. O engajamento do poeta é claro, como diz na Advertência: “a favor de quem está contra e contra os que estão a favor, seja quem for o detentor do poder, doa a quem doer”. Se todo o poema se dirige, para nossa tranquilidade e cumplicidade, aos políticos (parlamentares), o verso final soa feito bofetada quando chama de mentiroso todo aquele que se diz inocente. Para Glauco, sem dúvida, os políticos não prestam, mas, ao que parece, somos — também — indecorosos.