primeiro nos sequestraram.
nos tiraram de nossas terras
contra nossa vontade,
cruzaram o mar.
lutamos
e resistimos
chegamos nestas terras
doentes,
acorrentados,
vendidos fomos.
separados dos nossos
filhos, pais, irmãos.
nos estupraram.
mas pra eles
correntes
fome
chicote e
sol quente
ainda era pouco.
algo nos fazia fortes.
demonizaram nossos orixás,
criminalizaram nossa capoeira,
nossos quilombos,
extinguiram nossas línguas.
lutamos
e resistimos
nos pelourinhos nos escarnaram.
costas moídas nos troncos,
soluços de dor presos em mordaças.
300 anos e permanecíamos fortes.
Lei Áurea assinada,
sabemos que isso não mudou nada.
jogados nas favelas,
nas marginais, nas periferias,
nos subempregos,
nos quartos de despejo.
Esse é o lugar de preto!
longe das universidades,
das oportunidades!
resistimos!
tentaram nos embranquecer,
me chamaram pixaim.
resistimos!
muitos morreram,
muitos sonharam!
I have a dream.
I am a dream!
resistimos!
conquistamos espaços.
a dívida nunca será paga,
nos devem até suas almas!
racismo reverso,
fora macacos cotistas!
queremos a meritocracia!
Gritaram!
rimos!
não aguentariam o tronco,
a senzala e a chibata.
nossa força não tá no
grito.
tá na cor,
tá no sangue,
tá na raça!
O termo “diáspora” significa, em sentido estrito, dispersão dos judeus, mas, em sentido lato, qualquer dispersão de um povo em consequência de perseguição política, cultural, econômica, religiosa ou étnico-racial. Pelo mundo afora, diásporas são testemunhadas diariamente, desde comunidades que, devido a processos de gentrificação, abandonam seus bairros, até todo um povo que deve se deslocar para fugir de guerras — caso hoje de milhões de habitantes de Gaza, bombardeada barbaramente, aos olhos de todos, por uma impune Israel.
O poema Diáspora, de Meimei Bastos (de Um verso e Mei, 2017, Malê), fala da diáspora a que os negros foram forçados em função da escravização de que foram vítimas durante muitos séculos. As 16 estrofes — de um a oito versos com metros irregulares (de um a onze sílabas) — de certa forma permitem visualizar esse movimento de dispersão, que vem de longe e chega aos nossos dias. O teor testemunhal é evidente. O poema privilegia, em vez de metáforas líricas (subjetivas, herméticas, edulcorantes), uma objetiva linguagem referencial, como porta-voz de um drama coletivo, concreto, traumático. O caráter descritivo, o tom de denúncia, os versos curtos e contundentes confirmam a força da oralidade da forma-slam, em que Meimei, mestra em Artes pela UnB, tem se notabilizado (há um vídeo na internet em que ela performatiza com firmeza e sensibilidade esse poema).
O verso de abertura, à maneira de Brecht — “primeiro nos sequestraram” —, já diz do absurdo crime cometido: o tráfico de escravos da África para o Brasil começa simultaneamente ao “descobrimento”, no século 16. (O genocídio indígena, também desde a colonização portuguesa aqui, acompanha a tragédia do povo negro.) Quando “cruzaram o mar”, de um continente a outro, século a século, milhões faleceram ainda nos (mal)ditos navios negreiros. A vida dos sobreviventes em solo brasileiro era inimaginavelmente desgraçada, triste, desumana — sob qualquer aspecto. O romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, narra parte, em suas centenas de páginas, dos suplícios sofridos. Não faltam na literatura e nas artes exemplos de tanta dor, mas decerto a nenhum deles é dado o poder da reparação. O que se pode fazer, como um dever de memória, é lembrar o sofrimento, o crime, para que jamais se esqueça de que um dia, e por muito tempo, existiu escravidão, e seres humanos negros foram mortos e, se vivos, explorados e tratados como se fossem coisas descartáveis.
Para que não se esqueça dessa saga pela vida, é necessário repetir à exaustão: “lutamos e resistimos”. O conceito de resistência tem sido excessivamente utilizado — e isso não é à toa. Grupos minorizados, invisibilizados, subalternizados inventam formas de sobreviver e de expressar essa situação ancestral. A poesia de Meimei se solidariza com os pretos, os pobres, as mulheres, o pessoal da periferia e das quebradas, os oprimidos em geral (ver Sororidade). Na quarta estrofe, o poema denuncia outro crime hediondo, vinculado à escravização: “nos estupraram”. Em poemas de Um verso e Mei o corpo — corpo da mulher —, infindáveis vezes vítima de brutal violência, ganha protagonismo, e a liberdade do desejo é o horizonte que se almeja, como no belíssimo Diz do autoamor, ou siririca, cujos versos finais são apoteóticos: após ouvir, desde menina, “se toca”, a mulher se descobre: “agora nem pele clara,/ nariz fino,/ cabelo liso,/ português bem dito,/ rua asfaltada/ CEP grã-fino,/ nem mesmo farda,/ nada me rebaixa!/// e eu não pertenço a ninguém!/// me tocar foi o melhor presente/ que me dei”.
Cristiane Sobral afirma, na orelha do livro, que “as letras de Meimei se impõem contra o machismo, o racismo e os preconceitos estruturais”. É uma poesia política, crítica, consciente, feminista. Entre os/as poetas de maior visibilidade no cenário contemporâneo, poucos têm um perfil assim tão engajado. Em tempos em que o obscurantismo fascista paira sobre nossas cabeças como uma ameaça real, carece de ter coragem. Talvez fosse a coragem esse “algo [que] nos fazia fortes”. Forte a ponto de resistir — com quanta dor — à ação predatória dos colonizadores em relação aos orixás, à capoeira, aos quilombos, às línguas. Nos pelourinhos, nos troncos, em mordaças, os negros suportaram “300 anos” até chegar a “Lei Áurea assinada”, mas a poeta sabe “que isso não mudou nada”. O romance Memorial de Aires, de Machado de Assis, narra parte dessa ilusão áurea vendida por fazendeiros decadentes, que se livraram dos escravizados deixando-os à deriva.
Libertados, os pretos, como diz o poema, foram “jogados nas favelas/ nas marginais, nas periferias,/ nos subempregos,/ nos quartos de despejo”. A alusão ao clássico livro de Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo – diário de uma favelada, de 1960, é precisa: a escritora que vivia de catar papéis, após sucesso fulgurante, termina a vida em novo ostracismo, “longe das universidades,/ das oportunidades”, em cruel metáfora para o destino de mulher, negra, mãe e artista. Logo depois, no poema, a famosa frase de Martin Luther King, proferida em 1963, vira um verso, que ganha de imediato uma sutil versão: “I have a dream./ I am a dream!”. Se Carolina foi esquecida, Luther King foi assassinado.
Mas a resistência se faz de geração em geração, lentamente, com sangue e luta, como se demonstra no emblemático poema de Conceição Evaristo, Vozes-mulheres. Meimei Bastos não deixa de ser essa filha de Conceição, que dá seguimento às vozes da bisavó, da avó, da mãe: “A voz de minha filha/ recolhe em si/ a fala e o ato./ O ontem — o hoje — o agora./ Na voz de minha filha/ se fará ouvir a ressonância/ o eco da vida-liberdade”. Tudo é difícil, entretanto, na vida do cidadão negro.
Depois de demorados anos, leis de reparação começam a aparecer, mesmo que se saiba que “a dívida nunca será paga/ nos devem até suas almas!”. Ainda assim, outros cidadãos (sobretudo brancos e da classe média e alta) não reconhecem a legitimidade de tais leis, e o poema expõe a ignorância e o racismo de quem grita “fora macacos cotistas!/ queremos a meritocracia”, como se estivessem numa reunião da Ku Klux Kan. (Em 17 de novembro de 2024, uma das manchetes da Folha de S. Paulo estampava: “Estudantes da PUC-SP gritam ‘cotista’ e ‘pobre’ para alunos da USP durante jogo universitário”.) A óbvia desigualdade histórica de condições deveria ser argumento suficiente e razoável para se entender o quanto há de abominável na defesa da meritocracia. Ainda assim, há quem defenda tal indecência.
Contra tudo e todos, o poema Diáspora afirma a força do povo negro, a força do povo preto, afirma o desejo de uma nova história que há de vir do lugar mesmo tão castigado: da cor, do sangue, da raça. Theodor Adorno, no conhecido ensaio Educação após Auschwitz (1965), assegura que “a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora”. As condições estão aí, por toda a parte, a olhos vistos, no Brasil e no mundo.
A despeito de ambos representarem o império estadunidense invasor e escravista (de 1526 a 1865), é gigantesca a diferença entre eleger uma mulher e negra ou um homem e branco (e bilionário, eugenista, misógino, arrogante, com posturas de extrema direita). Os EUA escolheram o truculento Donald Trump em detrimento da liberal Kamala Harris. No início do século 20, o Brasil teve o primeiro e único presidente negro, Nilo Peçanha (na verdade, um vice que chegou ao cargo devido à morte do titular, Afonso Pena). E, no início do século 21, tivemos a primeira e única mulher eleita para presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, que sofreu um golpe evidente — conduzido por homens e brancos (além de empresas, grupos e países descontentes com sua política).
O poema de Meimei Bastos aposta no papo reto. Em vez de beletristas exercícios herméticos solipsistas que grassam por nossa poesia, a poeta prefere buscar a comunicação com o outro, não o excluir. Por isso, mais do que a rima, importa o ritmo; mais do que a palavra impressa, a palavra falada; muito mais do que a expressão de sentimentos líricos oriundos de sua vida particular, importa a denúncia de uma catástrofe coletiva, dolorida, traumatizante. Naturalmente, todo sujeito está envolvido pela história a que pertence: a memória, o presente e o porvir se entrecruzam.
Por óbvio, nenhum poema dá conta de representar o imensurável sofrimento real vivido por milhões e milhões de pessoas negras. Mas vale saber que, para Meimei e para todos os que são solidários à causa, importa todo poema que sabe que é preciso agir e que, sim, desde sempre, vidas negras importam. E, sim, desde sempre é preciso resistir a diásporas que o opressor impõe — com votos conscientes, com atitudes éticas, com poemas de luta, força e coragem. De cor, sangue e raça.