Aí eu virei para mamãe
naquele fatídico outubro de 1969
e com dezenove anos na cara
uma mala e um 38 no sovaco,
disse: Velha,
a barra pesou, saiba que te gosto
mas que estás por fora
da situação. Não estou mais nessa
de passeata, grupo de estudo e panfletinho
tou assaltando banco, sacumé?
Esses trecos da pesada
que sai nos jornais todos os dias.
Caiu um cara e a polícia pode bater aí
qualquer hora, até qualquer dia,
dê um beijo no velho
diz pra ele que pode ficar tranquilo
eu me cuido
e cuide bem da Rosa.
Depois houve os desmaios
as lamentações de praxe
a fiz cheirar amoníaco
com o olho grudado no relógio
dei a última mijada
e saí pelo calçadão do Leme afora
com uma zoeira desgraçada na cabeça
e a alma cheia de predisposições heroicas.
Tava entardecendo.
Em 1978, Alex Polari de Alverga publica o livro de poemas Inventário de cicatrizes, cujo título sintetiza com precisão as dores e agruras de um tempo que não se quer nunca mais. O militante político se encontrava, então, encarcerado, por conta do seu envolvimento direto no sequestro do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, em junho de 1970. No ano seguinte, Polari é preso e preso permanece até 1980. Inventário de cicatrizes traz reminiscências, notícias e reflexões acerca não só do cotidiano da cadeia, o que inclui falar das condições de vida e sobrevivência, como excursiona por problemas gerais de poética e de escrita. Apesar dos inúmeros padecimentos registrados ao longo da obra, há um traço que, de certo modo, surpreende o leitor: a presença constante do humor, em forma mista de deboche e ironia, sobretudo porque esse humor se produz pela voz daquele que sofria o martírio, praticamente durante o constrangimento da dor, contrariando afirmação de Vladímir Propp, em Comicidade e riso, ao dizer que “é possível rir do homem em quase todas as suas manifestações. Exceção feita ao domínio dos sofrimentos, coisa que Aristóteles já havia notado”.
Em Dia da partida, usando uma linguagem referencial, registra-se o “fatídico” (fatal, sinistro) dia de sair de casa, para não “cair” como o “cara”, num outubro de 1969. No dia 25 deste mês, a Junta Militar — que governava o país desde que Costa e Silva tivera um derrame em agosto — “elegeu” para presidente o general Emilio Garrastazu Médici. Tem início um período ainda mais repressivo, cruel e bárbaro. Se no poema o militante tem 19 anos, na rememoração do livro (em 1978) o poeta já possui quase 30. A linguagem coloquial, oralizante, bem ao espírito dos poetas marginais desbundados, e livres, comparece em peso: “aí”, “barra”, “tou”, “sacumé”, “trecos”, “mijada”, “zoeira”, “tava”. A “alma cheia de predisposições heroicas” lembra o Galileu de Brecht, quando o protagonista diz: “Infeliz a terra que precisa de heróis”.
Nessa lírica que se quer de cunho confessional e autobiográfico, é imperioso destacar o engajamento do poeta cidadão, Alex Polari, que, ainda preso, escreveu também Camarim de prisioneiro, em que confirma sua poética de guerrilha, sem torres de marfim: “Quanto a técnicas, estilos etc., isso permanece para mim como algo secundário, sem qualquer importância (…). Esses poemas são, em certa medida, vômitos. Evocam a clandestinidade, a tortura, a morte e a prisão. Tudo, absolutamente tudo neles, é vivência real, daí serem diretos e descritivos”. Se a ditadura produz cicatrizes no poeta, o poema é parte desse inventário — uma espécie de patrimônio às avessas em que a invenção tem, apesar da opressão, seu lugar. Assim conclui Alfredo Bosi o capítulo Poesia resistência de O ser e o tempo da poesia, de 1977: “Projetando na consciência do leitor imagens do mundo e do homem muito mais vivas e reais (…), o poema acende o desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela. (…) A poesia traz aquela realidade pela qual, ou contra a qual, vale a pena lutar”. Optando pelo coletivo, e encenando um ar espontâneo para a expressão poética, Polari emblematiza a tribo que fez da arte um instrumento de denúncia contra a desumanização, fez de seus versos um signo de resistência pelo viés do engajamento.
O poema fala, sem rodeios, da guerrilha urbana, que promoveu ações contra o golpe e a ditadura militar. Fica patente certo grau de improviso e voluntarismo de alguns militantes: o revólver “38 no sovaco” diz da vontade de resistir, mas sem a rígida disciplina e o imenso suporte da polícia do Estado. Dia da partida é, a um tempo, cômico (“dei a última mijada”), lírico (“Tava entardecendo”), épico (“predisposições heroicas”) e dramático (“a polícia pode bater aí/ qualquer hora”). Quando o poeta rememora que, após a despedida da mãe, entre românticos “desmaios” e realistas “amoníacos”, saiu “pelo calçadão do Leme afora”, um revelador efeito se produz: vislumbramos lugar e classe a que pertence o jovem guerrilheiro (classe média da zona sul carioca), mas também a confusão e o conflito típicos de momentos agônicos. Afinal, se Leme é um bairro do Rio de Janeiro, também indica alegoricamente um instrumento — leme — que determina a direção de algo. Acontece que o jovem sai de casa “com uma zoeira desgraçada na cabeça” e, com mais o cheiro do amoníaco e todo o clima de perseguição o texto se pinta de um tom efetivamente trágico, que serve, feito uma mônada, como uma representação geral do contexto tenso de então. Como dizia uma canção dos anos de 1980, de Milton e Brant, “Tem gente que vai pra nunca mais”.
A pressa da partida — que deixa a “Velha” e o “velho” para trás e se preocupa com o futuro de “Rosa” (nome real ou fictício, importa, metonimicamente, a potência da beleza intensa e efêmera que o substantivo invoca) — encontra correspondência na “pressa” dos versos de cortes variados, recheados de registros orais (“sacumé”, “tava”) e incorreções formais (“trecos (…) que sai”), realizando, assim, curiosamente, uma harmoniosa isomorfia entre sintaxe e semântica, transformando, para usar termos de Leminski, o que parece relaxo em surpreendente capricho.
Se os versos de Dia da partida traduzem mesmo uma “vivência real”, então o jovem do poema é Alex Polari. Na verdade, era. Após sair da prisão, Polari enveredou por um caminho místico (Santo Daime), ao qual se dedica, que se saiba, até hoje em dia, décadas depois. Na Teoria estética, Adorno diz que “a possibilidade real da utopia — o fato de a terra, segundo o estado das forças produtivas, poder ser aqui e agora o paraíso — se conjuga num ponto extremo com a possibilidade da catástrofe total”. A revolução popular, das massas, não veio — o que não quer dizer que não virá. Quem sabe, ela “pode bater aí/ qualquer hora”. Para que o paraíso seja, deveremos estar preparados. E poemas como este, e livros como Inventário de cicatrizes e Camarim de prisioneiro, terão sido fundamentais para que o sentimento utópico tenha sobrevivido, apesar de e após tantas e temerosas catástrofes.