Conselho se fosse bom, de Manoel Herzog

Sem pompas, com graça, poema funciona como uma janela sutil para a obra de Herzog
Manoel Herzog, autor de “Boa noite, Amazona”
01/06/2023

“Ficção ou fique doido.”
Isso me disse o analista:
“Escreva, der branco insista.”
Pensei: “Ou escrevo ou me fodo”.

Mas andava pessimista —
Depressão me lascou todo.
“Eu vou sair deste lodo” —
Pensei — “Vou ficar na pista

Pra negócio, uma editora
Me descobre e eu fico rico”.
Assim que neste penico

Meti-me, foi em má hora
Que ouvi o analista obscuro:
Hoje, além de doido, duro.

O humor na poesia tem sido, desde Gregório de Matos, uma estratégia discursiva para seduzir leitores, revolver questões, abalar valores do senso comum, quando não, ao contrário, os afasta, as distorce e fortalece valores estereotipados. No soneto em pauta, se entramam considerações em torno da razão e da loucura, da ficção e da realidade, da eficácia da psicanálise, da criação poética, da linguagem decorosa, da condição depressiva, da sobrevivência do artista, tudo isso em curtos versos setissílabos amparados numa vontade de produzir o riso.

O verso de abertura dá o tom de impacto: entre aspas, antecipando ser a fala de outrem, se lê: “Ficção ou fique doido”. A grafia “ficção”, no papel, entra em jogo e atrito com a sonoridade “fique são”, tendo em conta a sequência da frase: “fique são ou fique doido”. Nesse entendimento, sanidade e doideira se entrecruzam, a partir do aspecto sonoro. Quando, contudo, se fixa o sentido da palavra grafada, a frase ganha distinta perspectiva: “Ficção ou fique doido”, isto é, crie, invente, escreva, faça arte, faça ficção para que a doideira não se instale.

Somente no verso seguinte as aspas esclarecem que tal conselho teria vindo do analista do escritor. A ambivalência, que transita da palavra grafada (ficção) à falada (fique são), se amplifica se não sabemos ao certo a forma como a frase-conselho completa derivou do analista ao analisando. Essa ambivalência mesma se expressa no teor da deslizante frase, que fala, afinal, de ficção, ou seja, de imaginação, fantasia, quimera. De um modo e de outro, o poeta realiza o conselho, pois faz ficção em forma de soneto, cuja feitura é calcada em cálculos (metros, rimas, cesuras) que exigem do poeta que fique são.

Seguindo as dobras metapoéticas, o poeta põe em cena o movimento mesmo da escrita produtiva contra um sintoma da afasia: “‘Escreva, der branco insista.’ / Pensei: ‘Ou escrevo ou me fodo.’”. O dito chulo, “me fodo”, reforçado pela rima com “fique doido”, surpreende e de imediato provoca a reação cômica, que percebe que “ficar doido” e “se foder” pertencem a um campo similar, ou seja, que ficar são, ainda que fazendo ficção, é alternativa literalmente mais razoável.

No entanto, confessa o poeta na quadra-divã que pessimismo e depressão o levaram ao lodo, à degradação, à decadência. O uso imprevisto do verbo “lascar” colabora para um efeito hilário, pois, em geral, há uma semântica da seriedade, mesmo mórbida, em torno da condição depressiva, e o verso “Depressão me lascou todo” desloca tal semântica, ao situar sintaticamente o termo “Depressão” como sujeito que “lasca” (prejudica, maltrata, bate com força) o paciente poeta que “andava pessimista”. Na acepção mais conhecida de “lascar”, a depressão arranca pedaços, racha, afeta a integridade de quem por ela é tomado. O psicanalista Abrão Slavutzky diz, em Humor é coisa séria (2014), que “o humor é uma forma de se esquivar de um direto da realidade e em seguida gozar dela. Gozar desta mesma realidade agressiva, mortificante, e sorrir diante dela”. Devolver a lasca.

Lascado e ladino, o poeta ri do “branco-lodo-penico” em que se meteu, é guerreiro, não se entrega e, de posse de si (“Pensei”), decide agir e “sair deste lodo”, que inclui, pelos indícios, dificuldade financeira (negócio, rico, duro). Por isso, vai “ficar na pista”, deixar-se disponível para que alguma editora — sendo ele um escritor — o descubra e, assim, saia da pindaíba. Contudo, a sina não se modifica e o poeta vai do lodo ao penico (“vaso para urina e dejeções”, via Houaiss) e, sem herança nem patuá, conclui que “foi em má hora” dar ouvidos ao conselho do “analista obscuro”, quedando, “além de doido, duro”. O triste fim do pessimista poeta, que neste livro atende pelo nome de Manoel Herzog (em outros, será Germano Quaresma), se assemelha em muito à trajetória dos poetas do Brasil e desse mundo: tidos como lunáticos, com frequência depressivos, pobres, marginalizados, padecem na busca utópica do tesouro escondido: editora, leitores, sucesso.

Este soneto, Conselho se fosse bom, encontrou seu destino no livro Sonetos de amor em branco e preto, em 2016, publicado pela valente Patuá, com apoio do Proac, um programa de incentivo à cultura do estado de São Paulo. De certo modo, o soneto se dá a ver como uma variação do vaticínio do poeta baiano em Épico, de Araçá azul: “Destino eu faço, não peço./ Tenho direito ao avesso./ Botei todos os fracassos/ Nas paradas de sucesso”. No livro, o poema pertence à seção Sonetos sociopolíticos, aos quais o próprio autor se refere em Uma breve exposição de motivos: “Não pretendo fazer panfletagem, estou anarquista, foi o horrorshow da conjuntura política que levou a escrever estes registros com sarcasmo, ri-se pra se defender”. Premiado por vários livros, Manoel Herzog tem reconhecimento de pares, feito os catorze que comparecem no “posfácio-soneto” ao fim do volume: Ademir Demarchi, Adriane Garcia, Alexandre Guarnieri, Glauco Mattoso, Marcelo Ariel, Waldo Motta, entre outros. Este capixaba do time de eleitos o homenageia com um dístico: “Preto no branco, branco no preto:/ Manoel Herzog — mestre do soneto!”. Mestre até quando comete um despudorado cacófato ao encadear um terceto no outro: “… neste penico/ meti-me”. A língua do poeta sempre a pronto.

Se no poema em mira se mira o heptassílabo, o verso de longe preferido pelo poeta é o clássico decassílabo, como no Soneto paulistano: “Acordei madrugada, um puta frio./ Rumei pro meu banhinho matinal/ E o que presenciei me deixou mal:/ Chuveiro queimou, puta que pariu”. Humor, ironia, deboche, escracho, obscenidade, palavrão, escatologia, pornô são caminhos por onde passam seus poemas, estrondos na estrada. Também prosador, o poeta leva para a sua desbocada lírica a famosa diferença entre conto e romance feita por Cortázar, procurando a cada poema reinventar o nocaute já de saída, porque os leitores que esperam o resultado por pontos são cada vez mais raros.

No prefácio, Herzog mostra estar a par da mais fina tradição de sonetistas e sintetiza um ou outro traço de Petrarca, Shakespeare, Donne, Dante, Verlaine, Mallarmé, Keats, Milton, Góngora, Neruda; Camões, Sá de Miranda; Gregório, Augusto, Bilac, Vinicius, Glauco; e ainda Bandeira e Drummond. Em um dos mais célebres sonetos do itabirano, Oficina irritada (Claro enigma), a reiterada rima consoante em “uro” — duro, escuro, futuro, imaturo, impuro, pedicuro, muro, Arcturo — deixa insinuada a possibilidade de, mesmo paródica, uma citação meio torta ao gauche. Se os enigmas se multiplicam no poema de Drummond e, lá, é o “soneto duro” (árduo, penoso, algo hermético), no poema de Herzog parece tudo às claras e “duro” (pobre, sem dinheiro, algo falido) é ou está ou se pinta o poeta.

Há uma prosa de enredo no soneto: o escritor ouve de seu analista para não parar de escrever (“insista”), evitando a doideira, que pode advir da Síndrome de Bartleby. Mesmo deprimido, vai à luta, mas nada consegue. Na contramão do conselho, permanece, segundo o próprio, doido, mas agora também duro (supostamente por ter insistido em continuar a escrever ou talvez, ironicamente, por ter de pagar a consulta ao “analista obscuro”). O poema em si pode ser, contudo, também a prova cabal de ter sido um “bom conselho” o insistir em escrever, pois foi escrevendo Conselho se fosse bom que o paciente e poeta pôde pensar (“Pensei:”; “Pensei —”) sobre o conselho recebido. Em suma, o “conteúdo” do poema diz que o conselho de nada adiantou, no entanto, a existência do soneto diz o contrário.

A consciência dessa situação (de ambivalência, de indecidibilidade, de aporia) o poeta parece expressar, se não já no título, desde a primeira palavra do poema, conforme vimos, que transita entre a fantasia da “ficção” e o juízo do “fique são”. Com “ficção” o verso de abertura fica com seis sílabas apenas, contrastando com os demais, todos com sete sílabas; com “fique são”, lida a palavra a contrapelo de sua grafia, considerado o indubitável intuito de produzir uma paronomásia, o verso se constitui, feito os demais, um heptassílabo. Pensando nesse vaivém, voltamos a Abrão Slavutzky: “A janela do humor é uma forma sutil de ver o mundo, é um esforço para se libertar da tediosa condição humana, aliando a comédia e a tragédia de forma paradoxal. O humor é uma ponte entre o peso e a leveza, entre a lágrima e o sorriso, capaz de brincar com as situações sérias, colocando tudo em dúvida”. Ficção — fique são.

Assim, sem pompas, com graça, com nuances, que podem passar em branco, abafadas pelo barulho que provocam palavras como “doido”, “fodo”, “lodo”, “lascou”, “penico”, “duro”, ou abafadas pelo riso que surge do algo insólito enredo, esse poema de Manoel Herzog — que abala, revolve e seduz — funciona como uma janela sutil para a sua obra, à espera de analistas menos, bem menos obscuros.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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