Civilização-lixo, de Fabiano Calixto

Como pode se manter, ao longo de incríveis 600 anos, uma estrutura que separa, de forma abismal, muito poucos que têm muito, e muitos que têm muito pouco?
O poeta Fabiano Calixto, autor de “Civilização-lixo”
01/10/2022

há 600 anos as famílias mais ricas de Florença
são as mesmas famílias mais ricas de Florença

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as famílias mais ricas de Florença são as mesmas
há 600 anos

isto é
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as famílias mais ricas de Florença
desde o ano de 1427
são as mesmas famílias mais ricas de Florença hoje

há 600 anos os mais ricos de Florença
são os mais ricos de Florença
sendo os mais ricos de Florença
há 600 anos
há 600 anos
600 anos
há 600 anos os mais ricos de Florença
são os mais ricos de Florença

Uma leitura do poema basta para perceber: o recurso à tautologia encena o espanto em relação ao que se afirma. Porque é espantoso — para dizer, por ora, o mínimo — a cada vez constatar, se não a impossibilidade, a extrema dificuldade de mobilidade social e econômica, num mundo, de que Florença é apenas um metonímico exemplo, feito de tal modo que nele prevalecem, sobretudo, desigualdades e injustiças. A cidade italiana dá a ver como funciona e se mantém, séculos afora, esse mundo. O poema nem precisa explicitar, em seus versos, o diagnóstico que se antecipa no título: a civilização (“conjunto de aspectos peculiares à vida intelectual, artística, moral e material”) é um lixo (“sem valor ou utilidade, ou detrito que se joga fora; coisa ordinária, malfeita, feia”). Repetir, lembrar, espantar-se, indignar-se, ad nauseam, com isso — com a naturalização e perpetuação de um estado brutal de desequilíbrio de posse de bens materiais (de riqueza) — faz parte de todo objeto que incorpora, em um só gesto, a teoria e a práxis política.

Tal gesto atravessa o poema e a poética de Fabiano Calixto. Com lucidez, em esclarecedora entrevista (https://revistacult.uol.com.br/home/entrevista-fabiano-calixto/), o poeta nascido em 1973, em Garanhuns (PE), diz: “Fliperama [2020] é, em suma, um livro muito político, anticapitalista, antifascista, contra a ininterrupta cretinização e sucateamento da vida, contra a destruição dos modos de existir neste planeta, contra o mainstream, contra o establishment, contra as sociedades de controle, o poder e os poderosos. Pero sin perder la ternura jamás! Uma obra de arte a favor da vida e da liberdade”. Contra a civilização-lixo, sintetizada no poema, que parece, sem nenhum sinal de interrogação, ecoar uma pergunta: como pode se manter, ao longo de incríveis 600 anos, uma estrutura que separa, de forma abismal, muito poucos que têm muito, e muitos que têm muito pouco? A ausência de qualquer pontuação gráfica ao fim dos versos e a presença dos dois-pontos, isolados, em dois versos, ampliam a sensação de espanto, pois a informação absurda que o poema traz poderia vir carregada de contundentes exclamações ou de irônicas reticências.

A notícia em que o poema se ampara é real: em 2016, dois economistas italianos, Guglielmo Barone e Sauro Mocetti, a partir de declarações de impostos de famílias italianas de 1427, verificaram a referida estratificação. Na matéria da Forbes, “Famílias mais ricas de Florença são as mesmas há 600 anos”, se fala em “dom para manter seus negócios funcionando” e nos “mais bem-sucedidos” em perpetuar a fortuna. (Dom? Bem-sucedidos? Não, Forbes!…) A matéria da Exame se intitula: “Famílias mais ricas de Florença são as mesmas em 1427 e 2011”. E assim a manchete da Época: “As famílias mais ricas de Florença em 1427 ainda hoje são as mais ricas”. O espanto que a tautologia nos empurra olhos, ouvidos e goela abaixo vai se naturalizando, a contragosto, à medida que nos damos conta de que Florença fica na Itália, na Europa, mas tal lugar poderia se referir ao Brasil, tanto quanto à imensa maioria dos países do planeta.

Há inúmeras estatísticas que comprovam a verdadeiramente cruel concentração de riqueza. Ao léu, na internet, encontram-se pesquisas que mostram o estado dessa questão no Brasil. Numa delas (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59557761), de 2021, há dados evidenciando que:

1. Os 10% mais ricos no Brasil ganham quase 59% da renda nacional total;

2. Os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos;

3. A metade mais pobre no Brasil possui menos de 1% da riqueza do país;

4. O 1% mais rico possui quase a metade da fortuna patrimonial brasileira.

Outras pesquisas, assustadoras, concretizam em números a realidade cotidiana, visível, triste, que separa as pessoas em classes inconciliáveis: ricos e pobres — ou que nomes tenham: burgueses e operários, patrões e trabalhadores, empresários e peões; os que detêm o poder (e o lucro) sobre os meios de produção e os que efetivamente produzem. O poema, martelando essa trágica e espantosa informação, coopera, a seu modo e alcance, para que alguma consciência se elabore, e para que tal consciência esclarecida se transforme, quem sabe, em alguma ação prática. Um poema é uma ação prática.

Em Churrasco em Pasárgada, de Fliperama, o poeta se irmana a pares, a partir de alusões a conhecido poema de Cabral: “nós, severinos de mesmas águas de pias/ filhos de mesmas marias e de mesmos finados zacarias,/ de mesmas sesmarias, na fila da mesma fria ruína destes dias,/ mesmos subúrbios, favelas, vilas, cortiços, periferias,/ defendendo a alegria/ contra a parada cardíaca,/ vivendo a vida,/ contrariando as estatísticas”. Nada mais distante da elitista Florença — em cujo nome, ironicamente, se inscreve palavra tão formosa. Na citada entrevista, Calixto oferece uma pequena autobiografia, citando Belchior e Chico Buarque: “Sou um cara preto, nordestino, pobre e sul-americano, sem parentes importantes, sem carta de amigos poderosos, sem dinheiro no banco, portador de uma solidão agreste, venho de uma família muito simples (o meu pai era paulista, minha mãe, pernambucana; ela, analfabeta; ele cursou até o quarto ano primário; dois guerreiros), fui criado em uma cidade operária, não tive biblioteca em casa, fugi da escola, fui e voltei. Não devo satisfações a ninguém. Resisto no meio dessa brutal história que é a história do nosso país. Primeiro, e muito importante, é que não virei estatística”. Seja no poema, seja na entrevista, contrariar a estatística é não virar estatística, isto é, escapar à fatalidade capitalista, com postura afirmativa, crítica, vital. Saber que Florença é aqui também diz de uma consciência necessária para lutar — com “piedras, noches, poemas” — contra opressores de todos os matizes. Florença é o mundo.

Há dezenas de poemas em Fliperama. A despeito da presença hegemônica de um tom político, que traz para o palco múltiplas mazelas sociais, o livro se assemelha a um leque impressionante de formas e temas, do qual os ótimos textos de Letícia Ferro (posfácio), Natália Agra (orelha) e Rodrigo Lobo Damasceno (prefácio) dão conta. Há de tudo, desde poemas que aludem a futebol (Dadá Maravilha, Sócrates), poemas que lançam mão de recursos visuais (O futuro está por um triz, Sol vermelho), poemas que citam a mancheias (as seis epígrafes — de Enzensberger, Baraka, Secos & molhados, Belchior, Bolaño e Metallica — já dão a ver esse leque), poemas ferozes, poemas líricos, poemas com muitas faces, do trágico ao cômico. Há, por exemplo, Deprê Mallarmé: “tudo existe, é certo,/ pra acabar em deserto/// tudo existe, é fatal/ pra virar igreja universal”, em que à maneira (d’après) avessa à de Mallarmé, quando tudo viraria livro, em tempos atuais (deprê), tudo vira igreja. A luta do esclarecimento contra o obscurantismo continua. E há, também, o romântico Manhã de setembro: “numa manhã de setembro/ meio dormindo/ meio acordado/// foi assim/ no êxtase enovelado/ do pós-sonho/ que ouvi pela primeira vez/ a mijadinha dela”. A cena onírica, neblinosa, se faz em suspense até que o desfecho inusitado — hoje se diz: plot twist —, com a carinhosa “mijadinha”, surpreende o leitor, aquele desacostumado com amor e humor.

Theodor Adorno em O artista como representante (1953), em Notas de literatura I, mostra o “conteúdo histórico e social inerente à obra de Valéry”, a partir do livro Degas, dança desenho. Para Valéry, segundo o filósofo alemão, “o homem como um todo, e toda a humanidade, estão presentes em cada expressão artística e em cada conhecimento científico”. O homem, ao dar o máximo de si, estaria não só satisfazendo a exigência da própria arte, mas elevando-se a si mesmo, ao colocar a razão — lógica, coerência, concentração, densidade, resistência, organização — em posto privilegiado no ato criador, desvencilhando-se da arte fácil: “não se tornar estúpido, não se deixar enganar, não ser cúmplice: estes são os modos de comportamento social sedimentados na obra de Valéry, uma obra que recusa o jogo da falsa humanidade, da aprovação social à humilhação do homem”. O homem completo, o artista completo seriam, mais do que um indivíduo que produz uma obra qualquer, o representante do “sujeito social coletivo”; mais do que o criador de algo contingente, dispensável, o fundador de alguma coisa incontornável, única porque histórica, porque encontrou a forma extrema, exata, de sua existência.

A ladainha ramerrante de Civilização-lixo, em que alguns termos se repetem à exaustão (600 anos, famílias, mais ricas, mais ricos, Florença), diz exatamente do tempo espantoso que tal situação perdura. O tempo lento, de lenga-lenga, do poema encontra eco no tempo histórico em que se perpetua tamanho disparate. Algo semelhante, decerto noutro contexto, faz Drummond em No meio do caminho, com a intenção, segundo ele mesmo disse, de “chatear o leitor”. Aqui, com Calixto, não se trata de chatear, mas de sacudir, acordar, desalienar. Poema e poeta dizem: nunca me esquecerei na vida de minhas retinas tão fatigadas que/ há 600 anos as famílias mais ricas de Florença/ são as mesmas famílias mais ricas de Florença/ há 600 anos/ há 600 anos/ 600 anos/ há 600 anos os mais ricos de Florença/ são os mais ricos de Florença.

Há 600 anos.

600 anos.

600.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

Rascunho