Ciranda, de Maciel de Aguiar

No poema, há o nome de 50 pessoas desaparecidas durante a ditadura militar; em cada verso, verbos que indicam tristeza, falta, dor, morte
Maciel de Aguiar, autor de “Os anos de chumbo”
01/04/2024

“No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.”
Carlos Drummond de Andrade

Choro por Maria,
que chora por José,
que chora por Pedro,
que leva flores a Antônia,
que reza por Dolores,
que procura por Alberto,
que escreve a Agenor,
que suplica por Rita,
que indaga por Ricardo,
que celebra missa por Conceição,
que padece por Orlando,
que sente saudades de Virgulino,
que sonha com Odete,
que lembra de Dalila,
que pergunta por Dagmar,
que implora por Juliano,
que se queixa por Juvenal,
que soluça por Helena,
que chama por Elizabete,
que lastima por Carlos,
que paga promessa por Francisco,
que lamenta por Benedito,
que acende velas para Antônia,
que roga por Frederico,
que pede ajuda a João,
que olha a fotografia de Armando,
que sente falta de Eduardo,
que leva cigarros para Jerônimo,
que quer saber notícias de Nair,
que sofre por Lurdes,
que busca informações sobre Assis,
que manda recado a Rosália,
que espera encontrar Leandro,
que sente falta de Garcia,
que faz penitência por Madalena,
que insiste em encontrar Sabino,
que ouviu os gritos de Mário,
que tentou defender Antônio,
que viu o sangue de Ademar,
que se desespera por Stênio,
que se matou por Luzia,
que era irmã de Vera,
que tinha um retrato de Afrânio,
que sabia do endereço de Manoel,
que marcou encontro com Antenor,
que guardou as cartas de Rogério,
que espera por Dalila,
que ainda chora por Roberto,
que levou notícias a Walter,
que mandou procurar pelo cadáver de Sebastião,
que vive na província distante
e responde como se fosse Mateus:
— Por favor, escondam meu nome
da Lista dos Desaparecidos.
(Rio de Janeiro, 11.5.73)

No ano de 2008, entre os finalistas na categoria Poesia do tradicional prêmio Jabuti, estavam, entre outros, Chacal, Fabiano Calixto, Ivan Junqueira, Mariana Ianelli, Paulo Henriques Britto e o capixaba Maciel de Aguiar, que concorria com uma obra em quatro volumes: Os anos de chumbo. (O vencedor, com O outro lado, foi Ivan Junqueira.) No site da Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos, da UFSC, há uma síntese do que representam esses quatro volumes: “com cerca de 80 mil versos, trata-se da mais extensa obra da literatura brasileira em louvor à liberdade e contra a tortura praticada pelos órgãos de segurança em nosso País”. São centenas de poemas de fôlego, com versos longos, abordando incessantemente o período da ditadura sob múltiplos aspectos. Não à toa, no site Memorial poético dos anos de chumbo, com cerca de 1.500 poemas em torno da ditadura, Maciel de Aguiar é de longe o autor com o maior número de poemas. De certo modo, toda essa profusão se concentra, feito uma metonímia, no poema Ciranda, constante do volume 2.

Ciranda é dança e música, uma coreografia que envolve muitas pessoas, com as mãos dadas. A ligação entre as pessoas se dá nos versos pela reiteração anafórica do pronome “que”, que vai costurando uma grande roda em que — com variações — os participantes pertencem a uma grande lista de desaparecidos. No poema, há o nome de 50 pessoas (18 mulheres, 32 homens). Em cada verso, verbos que indicam tristeza, falta, dor, morte. Há uma primeira pessoa que dá início à ciranda: “[Eu] Choro por Maria”. Depois, esse “eu” não reaparece explicitamente, não entra mais na “quadrilha” (para retomar o sentido de “ciranda” e reafirmar a presença de Drummond). Entre os verbos, “chorar” é o que mais se repete, por quatro vezes, e se reforça com a presença de “soluça”. Destacam-se também os verbos do campo religioso: reza, celebra missa, paga promessa, acende velas, faz penitência. Além desses, outros são reiterados: leva flores, leva cigarros; indaga, pergunta, busca informações; suplica, implora; sente saudade, sente falta; procura por Alberto, procura pelo cadáver de Sebastião.

Sobre praticamente todos os versos e verbos paira a monstruosa sombra da morte. Há pelo menos duas sequências muito reveladoras do contexto de tortura, censura e perseguição: “que ouviu os gritos de Mário,/ que tentou defender Antônio,/ que viu o sangue de Ademar; e: “que sabia do endereço de Manoel,/ que marcou encontro com Antenor,/ que guardou as cartas de Rogério”. Há inúmeros depoimentos de prisioneiros que, além da própria tortura, testemunham o suplício de colegas. Sabino ouviu os gritos (de dor, desespero) de Mário que mesmo assim, por sua vez, tentou defender Antônio (tentou, provavelmente não conseguiu), e Antônio viu o sangue de Ademar (e sangue remete a ferida e violência). Na outra sequência, Afrânio sabia do endereço de Manoel (e estava, portanto, em delicada situação para uma “delação” induzida por tortura ou medicação, tipo Pentatol), que por sua vez foi se encontrar com Antenor (possibilitando prisão da polícia) que, por extensão, poderia comprometer Rogério (já que deste guardava cartas). Versos que encenam uma ciranda perigosíssima.

Sendo uma ciranda, que vai e vem, e dada a estrutura sintática e semântica do poema, à exceção do verso inicial e dos versos finais, todos os demais versos poderiam estar em outra ordem. Os versos 18 a 20, por exemplo, poderiam ser alterados (de 20 a 18), ficando: “que lastima por Carlos,/ que chama por Elizabete,/ que soluça por Helena”, e assim por diante. Por vezes, o aspecto sonoro sobressai e colabora para a cadência rítmica: “ajuda a João”, “notícias de Nair”, “informações sobre Assis”; noutras, algumas associações se impõem: em “reza por Dolores”, o sentido de “dores” se faz evidente; em “celebra missa por Conceição”, um leitor de Machado há de recordar de Missa do Galo; não parece casual serem Maria e José os primeiros nomes, considerando a trajetória de sofrimento e martírio que atravessa o poema, qual uma via-crúcis. Ademais, Maria é um nome bem comum e, entre possíveis sentidos etimológicos, consta “mar de amargura”.

A estrutura do poema, feito uma ladainha que se repete, lembra a ladainha propositalmente entediante do poema em epígrafe, No meio do caminho. Em Drummond, é tédio; em Maciel, é drama. A pedra que chateia o poeta de Itabira no poema do capixaba se transforma na “pedra da ditadura” que se pôs no meio do caminho de todas essas pessoas perseguidas, censuradas, violentadas, exiladas, assassinadas. Por isso, ao final, Walter “procura pelo cadáver de Sebastião”. O poema surpreende, contudo, e revela que esse último personagem, Sebastião, vive: “vive na província distante”, e seu desejo é não fazer parte dessa imensa “lista de desaparecidos”, com que os leitores, constrangidos, acabamos de tomar contato.

Maior ainda é a surpresa quando nos damos conta de que o nome completo do poeta autor dos versos é: Sebastião Maciel de Aguiar. Jovem, militou contra a violência da ditadura, passando tempos na clandestinidade. Foi torturado. A data do poema — 11 de maio de 1973 —, feito em pleno governo de Médici, o mais cruel dos generais, atesta sua militância. Em entrevista recente, acerca de seu engajamento contra o regime autoritário, Maciel declarou: “poucos querem saber daqueles tempos estranhos do regime militar, quando a expressão mais simples se chamava coragem”. Coragem que ganhou forma nas centenas de poemas e nos quatro volumes de Os anos de chumbo.

A inclusão de seu “próprio nome próprio” no poema performa e confirma o seu alto teor testemunhal. Ademais, a presença de seu nome, Sebastião (no limite indiscernível entre “eu poético” e “eu biográfico”), ao lado das dezenas de camaradas explicita a solidariedade da luta, que, mesmo desigual, foi levada, a preço de vidas, em prol da democracia e da liberdade.

Maciel de Aguiar possui uma trajetória singularíssima. Não bastassem os volumosos quatro volumes de poemas contra a ditadura, publicou biografias de ícones de massa no Brasil, todas com sucesso: Pelé, Roberto Carlos e Ayrton Senna. Ainda publicou as biografias do arquiteto Niemeyer e do amigo Rubem Braga. Se esses livros se dedicaram a celebridades midiáticas, por outro lado publicou uma série de 40 livros sobre a pouco estudada história dos quilombolas. Recentemente, em dezembro de 2023, foi indicado pelo PEN Clube Brasileiro ao Nobel de Literatura. Publicou mais de 140 obras, com muitos livros traduzidos. Ao longo da vida, exerceu importantes cargos de gestor de cultura no Espírito Santo. Continua, entretanto, ignorado pela historiografia literária, não somente nacional, mas mesmo a capixaba. Possivelmente, a prolixidade de sua produção e a decisão de participar do demonizado mundo da indústria cultural hegemônica (com biografias de famosos) espantem a crítica. Mas poemas bem elaborados, em que pese o enredo trágico, como Ciranda fazem com que se desconfie do espanto.

Ciranda, além de dança e música, também significa “passagem do tempo”, como na conhecida expressão “ciranda das horas”. O poema, feito em 1973, veio à estampa em livro apenas décadas depois, e em 2024 serve como testemunho de um tempo bastante difícil, cuja volta ninguém deveria querer. Mas os golpistas, torturadores e nazifascistas estão aí, sempre a chocar o ovo da serpente. Os desaparecidos do poema, com nomes reais ou não, homenageiam todos os desaparecidos pela ditadura brasileira, sabendo que desaparecido é um eufemismo para assassinado, morto, exterminado. Ditaduras também ressurgem, feito pêndulos, numa ciranda indesejada.

Para que as trevas não retornem, poemas como Ciranda e livros como Os anos de chumbo são necessários, sempre urgentes, e tentam impedir que a poeira do esquecimento apague a memória de Maria, José, Pedro, Antônia, Dolores, Alberto, Agenor, Rita, Ricardo, Conceição, Orlando, Virgulino, Odete, Dalila, Dagmar, Juliano, Juvenal, Helena, Elizabete, Carlos, Francisco, Benedito, Antônia, Frederico, João, Armando, Eduardo, Jerônimo, Nair, Lurdes, Assis, Rosália, Leandro, Garcia, Madalena, Sabino, Mário, Antônio, Ademar, Stênio, Luzia, Vera, Afrânio, Manoel, Antenor, Rogério, Dalila, Roberto e todos aqueles que caíram. Como numa ciranda, vamos de mãos dadas. Não esqueceremos!

(Agradeço ao amigo Marcelo Ferraz a dica do poema de Maciel de Aguiar)

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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