Bucema do contra [e outros poemas], de Zé Amorim

O que estimula o poeta é a junção de humor e pornô, com pitadas de paródia
01/11/2024

Bucema do contra
Esses todos que aí estão
Atrasando a minha vidinha
Eles passarão,
Eu passarinha!

Papudos
O Papa Bento XVI é um poliglota;
O Papanicolau, poligrota.

Escatulógico
para Catulus
O que é sexo anal?
É colocar uma vela
No bolo fecal.

Porrética I
De manhã amoleço,
de dia dardo;
de tarde endureço,
de noite bardo.

Frasal
Ao deitar com bufólicas,
soltei meus drummônios.

Os cinco pequenos poemas acima pertencem a dois livros de Zé Amorim: Movimento Pornaso (2017, em parceria com Diego Moreira) e O barbeiro de virilha e outras navalhadas a fio (2022). De imediato e de modo explícito, o que estimula o poeta é a junção de humor e pornô, com pitadas de paródia. O espanto e o pudor não impedem perceber na graça (vinda às vezes, e adrede, do mau gosto e do chulo) o engenho dos versos — e dos títulos. No periódico Fórum de literatura brasileira contemporânea (v. 9, 2018), a convite de Ricardo Vieira Lima, publiquei uma resenha do livro do dueto de amigos e poetas, da qual me valho para novas considerações.

Desde a provocadora capa de Ivan Alves Pereira, com uma espécie de Abaporu nua à maneira de Courbet, já se antevê a ousadia de Movimento Pornaso: poemas de tom e tema libertinos (mas não somente) em formatos elaborados, como se parnasianos fossem. Mas o hilário neologismo “pornaso”, que por si só já se opõe à sobriedade da caretice parnasiana, também antecipa o traço cômico que acompanha todo o livro, com muitos poemas que conseguem o raro feito de produzir riso no leitor. E, na tradição dos poemas fesceninos, há de igual modo a presença permanente de alusões a textos e autores, dando à obra aquele verniz intelectual que a tribo de poetas e críticos por vezes exige (o pornô, porém, a um tempo, homenageia e sacaneia).

Glauco Mattoso, no texto Fescenninidade na contemporaneidade, que abre Movimento Pornaso, destila parte da trupe que criou versos à feição destes de Diego Moreira & Zé Amorim: Eduardo Kac, Cairo Trindade, Bráulio Tavares e, antes, Gregório de Matos, Laurindo Rabelo e Zé Limeira, ou ainda os clássicos Catulo, Marcial e Aretino. O autor de Centopeia aponta que, “na pennipotente veia amorimoreiriana, […] eruditismo e chulismo podem concretizar a perfeita synthese dialectica”. Talvez não tão perfeita, nem tão dialética, mas uma síntese deveras tributária de certa tradição da poesia brasileira — de Gregório a Glauco.

Nos mais de 50 poemas da dupla de poetas catarinenses, ambos formados em Letras pela UFSC (o que explica o diversificado repertório literário), não há nenhum poema feito em dupla. Prevalece o soneto (sobretudo na mão de Diego), mas há haicais, formas livres e muitas paródias, lembrando, pela tríade pornô-humor-intertexto, o conjunto dos originalíssimos poemas escritos, entre 1933 e 1935, pelos capixabas Guilherme Santos Neves, Paulo Vellozo e Jayme Santos Neves, mas só publicados em livro no incrível Cantáridas e outros poemas fesceninos (1986).

Em Bucema do contra (“Esses todos que aí estão/ Atrasando a minha vidinha/ Eles passarão,/ Eu passarinha!”), o arquicitado poema de Mario Quintana — Poeminho do contra — ganha uma bem-humorada versão de Zé Amorim. Em Quintana, lemos: “Todos esses que aí estão/ Atravancando meu caminho,/ Eles passarão…/ Eu passarinho!”. A suave inversão de “Todos esses” em “Esses todos” se radicaliza na mudança de “atravancando” (dificultando) para “atrasando”, que lembra “atraso de vida”, mais grave, tanto quanto “meu caminho” (mais filosófico) vira “minha vidinha” (algo menor), até que vem o desfecho em que o lírico “passarinho” se transforma na erótica “passarinha” (termo popular para vulva) — desfecho, aliás, já anunciado no neologismo “bucema”, originado da metamorfose e fusão de “poeminho/ poEMA/ BUCeta”. Se Quintana parece ir contra chatos e Amorim contra repressores, ambos vão a favor da liberdade do corpo, seja em lírico modo passarinho, seja em erótico modo passarinha.

Papudos é um típico poema-piada de boteco, com trocadilho duvidoso — mas engraçado: “O Papa Bento XVI é um poliglota;/ O Papanicolau, poligrota”. De fato, consta que Joseph Ratzinger falava alemão, inglês, italiano, francês, espanhol e latim, além de ler grego e hebraico. Assim, um “poliglota”. O poeta lança mão da coincidência entre o nome “Nicolau” (que vários papas adotaram) e o nome “papanicolau” (exame ginecológico realizado com a introdução de um espéculo vaginal). O poeta, que perde o leitor mas não perde o poema, percebe o efeito de transformar “poliglota” em “poligrota”: a alteração de uma única letra (de “l” para “r”) cria uma palavra que dá a entender tratar-se de alguém que, à maneira daquele que conhece muitas línguas, conhece muitas “grotas”, escavações, vales: vulvas. Mais cômico e herético (e politicamente incorreto) é o trocadilho quando nos damos conta de que o sujeito “poligrota” é ninguém menos que um Papa, para quem o celibato faz parte do ofício. Por fim, o título Papudos brinca com o fato e fito de ambos (um, à vera; outro, inventado) se gabarem de feitos incríveis: conhecerem muitas línguas e grotas. Por causa dessa bravata, o poeta chama os papas de “papudos”, também porque “papariam” aquilo que o poema anuncia.

De maneira similar, em Escatulógico, dedicado ao poeta romano Catulus, o “pornasiano” poeta não se reprime, ao contrário, quer mesmo escandalizar: “O que é sexo anal?/ É colocar uma vela/ No bolo fecal”. A imagem de mau gosto é radical: não há aqui a colorida vela que alegra aniversários e bolos, mas uma vela fincada no meio de um “bolo fecal”, bolo de fezes, que vem, portanto, do ânus, daí a conclusão (estapafúrdia, por óbvio) de ser essa vertical e fálica vela em bolo vindo do ânus um exemplo de “sexo anal”. O poeta sabe que tanto o bom senso e mesmo o senso comum evitam temas coprológicos, relativos a excrementos e afins, e de propósito investe no no sense, vai na contramão do “belo e cheiroso”. O toque do poeta vem mais uma vez no neologismo do título Escatulógico, em que se incorpora o nome de Catulo, conhecido (lógico) por seus versos polêmicos de teor sexual, ao termo “escatológico”. Em suma, ainda que desagradável em seu teor, se há um trabalho de linguagem, o poeta topa a musa — e a obra.

A primeira quadra do célebre soneto Poética I de Vinicius de Moraes ganha em Porrética I de Zé Amorim uma hilária paródia. Em Vinicius, lemos: “De manhã escureço/ De dia tardo/ De tarde anoiteço/ De noite ardo”; em Amorim, temos: “De manhã amoleço,/ de dia dardo;/ de tarde endureço,/ de noite bardo”. Tal como fez com o Poeminho do contra de Quintana, o poeta mantém a estrutura sintática dos versos mas, ao alterar as palavras, preservando contudo as rimas, transforma o sentido do poema original. A intensidade metafísica do poema do poetinha carioca dá lugar a insinuações eróticas do porretinha catarinense, quando se entrecruzam os sentidos sexualizados de amoleço/dardo/endureço, fechando em metachave com “de noite bardo”, como num ciclo para que eros se renove via poesia. O título traz um neologismo — “porrética” — que parodia o original (“poética”), mas introduz e sugere (a) porre, recordando fama de beberrão do bardo compositor; e (b) porra, confirmando o teor sexual dos verbos amolecer/endurecer e do fálico substantivo dardo. O que há de sério na estrofe de Vinicius se transmuta em cômico, e esse movimento — como é típico da “porrética” de Zé Amorim — busca dessacralizar a poesia, trazendo-a da torre de marfim ao rés do chão.

A citação intertextual em Movimento Pornaso e em O barbeiro de virilha é frequente, é mesmo capital em seu afã de abalar cânones, dando-lhes inusitadas (e mesmo constrangedoras) direções. Linda Hutcheon apontava, em Uma teoria da paródia (1989), que, “se o receptor não reconhece que o texto é uma paródia, neutralizará tanto o seu ethos pragmático como a sua estrutura duplaˮ, ou seja, se o poema paródico depender exclusivamente do repertório do leitor em reconhecer o poema parodiado, o risco do logro aumenta (ambos, poema e leitor, sairão logrados). No entanto, Diego Moreira & Zé Amorim pinçam obras bem conhecidas da tradição poética brasileira, e raro será o leitor desse livro que não saberá decodificar a citação em movimento. Nos dois livros, os poetas acionam e destronam poemas de, entre outros, Alberto de Oliveira, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Cruz e Sousa, Glauco Mattoso, Gonçalves Dias, Gregório de Matos, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Raimundo Correia e quejandos — do barroco ao contemporâneo.

Nessa breve antologia de cinco poemas, após se apropriar de Quintana, Catulo e Vinicius, em Frasal, vemos um dístico que mistura Hilda Hilst e Carlos Drummond de Andrade: “Ao deitar com bufólicas,/ soltei meus drummônios”. Tal como Hilda, rara presença feminina em másculo e “pennipotente” mundo, criou o termo “bufólicas” (misto de bufão e bucólicas, em livro fundamental que funde humor e pornô), Amorim cria “drummônios”, entrelaçando o nome do mais lido poeta brasileiro, Drummond, mais “demônio” e “hormônio”, produzindo um curto-circuito de sentidos semelhante a quando, nervoso ou excitado, alguém “solta os demônios” ou “libera os hormônios”, notadamente os sexuais. Isso acontece, no poema, quando o poeta “deita com as bufólicas”, isto é, como se transasse com o livro pornocômico de Hilda no qual se tornam alvo de atenção reizinhos gays, fadas lésbicas, rainhas carecas e que tais. Numa frase, Zé Amorim sintetiza em Frasal sua poética que cruza riso, corpo e literatura, como também fez, aliás, o itabirano em tantos livros, mormente no despudorado O amor natural.

Zé Amorim, ex-professor e agora na militância em prol da arte com sua barbearia cultural em Floripa, se alinha à alta estirpe de bardoetas que quiseram pôr no verso (sem medo de sermos felizes, paródicos e desbocados) aquela verve picante que ora espanta, ora diverte, às vezes vira tesão, mas o que mais faz é provocar o pensamento de quem sabe que cada corpo só se excita conforme pode.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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