I.
Lembranças pouco nítidas, provavel-
mente falsas. Imagens que se ordenam
segundo uma lógica indecifrável,
talvez inexistente. Mãos que acenam,
uma porta entreaberta — não, fechada —
uma criança que não reconheço:
ou seja, muito pouco mais que nada.
É tudo que me resta do começo
disso que agora pensa, fala e sente
que pode ser denominado “eu”.
Claro que houve um instante crucial
em que esses cacos mal e porcamente
colaram-se. E pronto: deu no que deu.
Já é alguma coisa. Menos mal.
Paulo Henriques Britto é, hoje, no Brasil, um reconhecido poeta, com premiadíssima obra literária e destacada atuação na atividade tradutória e docente. Seu desempenho na composição de sonetos confirma sua perícia, desde o livro de estreia, Liturgia da matéria, em 1982. Com refinado humor, neste poema de Formas do nada (2012), que é o primeiro de uma série de oito, o poeta constata a impossibilidade de se saber, com clareza, como se constitui a subjetividade, daí a profusão de expressões como “pouco nítidas”, “falsas”, “indecifrável”, “inexistente”, “pouco mais que nada”, a lembrança hesitante de uma porta entreaberta ou fechada. O adulto não reconhece a criança, o começo, a origem, o que quer que tenha formado esse “eu”, que “agora pensa, fala e sente”. Mas essa dispersão, esses cacos se amalgamaram e, enfim, fizeram esse compósito que é o sujeito. Com autoironia, o poeta conclui que, apesar de desconhecer o processo, “já é alguma coisa”. O soneto, ao contrário dos cacos dispersos da memória, organiza o trajeto, dando-lhe início, meio e fim, com seus decassílabos e suas rimas consoantes. A impossibilidade de precisar a origem ganha seu contraponto na forma rigorosa, na lógica de um poema. E, diferentemente de grande parte da poesia solipsista que se produz em tempos atuais, o poema de Britto esvazia o sujeito, inflado, que se quer arrogantemente senhor de si e de suas razões. (Os apontamentos deste parágrafo, com modificações, já estavam em meu artigo O que testemunha a poesia brasileira contemporânea? Considerações a partir de obras indicadas ao Prêmio Portugal Telecom (2003-2014), apresentado na XIV Abralic, em 2015, na UFPA. E não mudei muito de ideia.)
Embora autônomo, o soneto em pauta evidentemente dialoga com a série — numerada de I a VIII — que compõe e inaugura. Inclusive o “pouco mais que nada” que o poeta reconhece em sua reminiscência encontra plenitude no sintagma “formas do nada”, no penúltimo verso do soneto VI e que dá título ao volume. Neste soneto e nos demais (à exceção do III), prevalece um ritmo de prosa, entrecortado pela quebra dos versos que afirma de imediato, já pela visualidade, o caráter artificioso da obra. Tal ritmo e sintaxe de prosa entram em conflito com o ritmo poético que estrofes e versos engenhados com métrica regular acionam, e este conflito ecoa, de certa maneira, o antagonismo temático do poema. A passagem do primeiro para o segundo verso dá a ver tal artifício: em “provavel-/ mente” o poema exige uma leve pausa e alcança uma rima externa (“indecifrável”) e outra interna (“inexistente”). No terceto final, o adjunto adverbial “porcamente” — agora inteiro, não recortado — rima de modo consoante com “sente” e ainda recebe o eco toante de “eu” e “deu”.
Uma busca
As lembranças e imagens difusas do passado acabam por definir o sujeito (este “eu” que quer se entender por meio de tal método de rememoração) como algo muito parecido com um objeto: “disso”, “cacos” e “coisa”. É nesse embate dialético entre sujeito e objeto que vamos flagrar o grande tema da série, revelado sem subterfúgios no soneto VI: “a transubstanciação de coisa em texto/ que é o seu único métier”. O título geral, Biographia literaria, latinizado, evidencia que se trata, sim, de uma busca, ainda que vã, pelo entendimento de tudo que configura a própria vida — “essa lenda, essa fábula” (VIII), mas é sobretudo uma escrita e ficcional. É, portanto, arte. Sendo arte, não podemos concordar que sejam “formas do nada”, por mais que este “nada” esteja indicando, ironicamente, impossibilidade, minimalismo, incompletude, escassez, desencanto.
Fazer o poema (objeto, arte, forma) é a maneira de o poeta (sujeito, eu) tentar entender os “cacos” que o constituem. Saber-se “cacos” — que “mal e porcamente/ colaram-se” — é já um entendimento plenamente histórico da subjetividade (fragmentada, híbrida, contraditória, mas não mística ou metafisicamente inacessível). Os cacos são uma forma — pulverizada, mas concreta — de algo, não uma forma de nada. Acontece, contudo, e isto parece já estar explicitado, que os cacos do sujeito ganham liga e cola na forma do poema, que assim insinua uma harmonia (entre sujeito e objeto, entre coisa e texto, entre lembranças e poema) que parecia inexequível ou impossível. O sujeito é o objeto de investigação, é a “coisa” que vai virar texto, tarefa por excelência do sujeito-poeta que se investiga, objeto: seu métier é este, e com tal intensidade que se diz “único”.
Theodor Adorno afirma no fragmento Métier, de Teoria estética (1970), que “todo artista autêntico se encontra obcecado com os seus procedimentos técnicos; o fetichismo dos meios tem também o seu momento legítimo”. Dominar seu instrumento constitui, assim, o desejo do criador. Ao escritor, em particular, resta o embate com a língua (se não, será embuste). No entanto, para além de qualquer beletrismo, narcisismo ou autotelismo, esse entregar-se radicalmente ao objeto que se quer criar traduz uma vontade que ultrapassa o alcance individual, e incorpora uma atitude que é, sob uma perspectiva filosófica, social. Em Métier, o filósofo alemão diz: “Para muitas das situações individuais, com que a obra confronta o seu autor, deve talvez haver permanentemente à disposição uma pluralidade de soluções, mas a diversidade de tais soluções é finita e perceptível em toda a sua extensão. O métier põe os limites contra a infinidade nefasta nas obras”. Ou seja, as soluções — diante da criação — são plurais, mas finitas, o que torna, além de intenso e exasperante, histórico e contingente todo gesto criador. Exatamente por serem muitas, mas não ilimitadas, é que as escolhas revelam seu lugar histórico, revelam o artista como representante de seu mundo.
No último soneto (VIII) da série Biographia literaria, em idade madura, o poeta irá resgatar termo fundamental do soneto de abertura: “Já se aproxima aquele tempo duro/ de se colher o que ninguém plantou./ Sim, a coisa deu nisso”. A desilusão dos desencontros e frustrações se amplia, quando se percebe que a coisa (aquela “alguma coisa”) difusa e indistinta de outrora se perpetua na coisa de agora, que, embora atendendo pelo nome de “eu”, transita ainda entre sujeito e objeto de si mesmo, uma “tábula/ rasa de si”.
Em Cerâmica, de Lição de coisas, Drummond utiliza imagem idêntica à de Paulo Henriques Britto: “Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara./// Sem uso,/ ela nos espia do aparador”. O desalento do itabirano, diante da estranha xícara de cacos, se assemelha ao do autor de Formas do nada: em ambos, há uma tentativa de entendimento do sujeito que se é por meio da atenção plena e concentrada ao objeto em mira. Se, em Drummond, essa atenção chega ao ponto de o poeta se sentir observado por um objeto supostamente inanimado (a xícara), nos sonetos de Biographia literaria, de Britto, objeto (o poema sobre o sujeito) e sujeito (o objeto do poema) se confundem, como a coisa se transubstancia em texto. Nesse movimento, somos levados a uma espécie de devir-xícara, e quedamo-nos, cacos diante do poema, como estranhos coautores de uma biografia literária alheia, multiplicando a confusão. Menos mal.