O QUE É O QUE É, MINHA PRENDA,
A PRIMEIRA COISA QUE O ZOOLÓGICO TEM
E TEM NO MEIO DE QUALQUER FAZENDA?
ZOOLÓGICO,
FAZENDA?
A LETRA Z.
(…) PODE GRITAR JÁ, SEM DÓ:
O QUE É QUE ASSOMBRAÇÃO
USA SEIS DE UMA VEZ SÓ?
A LETRA U.
UUUUUU.
(…) QUERO VER ADIVINHAR!
O QUE FALTA NUMA ANTA
PARA IR PARA O ALTAR?
A LETRA S.
S + ANTA = SANTA
(…) RESPONDE ESTA, QUERIDA:
PARA QUEM ESCUTA MAL,
QUAL A LETRA PREFERIDA?
A LETRA Q.
QUÊ?
(…) O QUE É QUE NENHUMA TEM,
NADA, TAMBÉM, NUNCA TEM SEMPRE,
NINGUÉM SEMPRE TEM?
A LETRA N.
(…) SERÁ LÁ? SERÁ ALI?
PARECE CÁ. NÃO É AQUI…
A LETRA K.
K SOA COMO CÁ!
(…) ADIVINHA, ADIVINHA, MEU BEM,
COM DOIS EU FAÇO UM NENÉM.
COM 2 B.
B + B = BEBÊ.
(…) AGORA PODE FALAR PARA TODA A GENTE
QUE VOCÊ SABE O ABC DE TRÁS PARA A FRENTE.
A poesia feita para crianças e jovens padece, ainda, de infantilismo. Não é o caso, contudo, desse livro-poema da mineira Angela-Lago (1945-2017), escritora e ilustradora de Abc doido, vencedor no ano 2000 do prestigioso e concorrido Prêmio Jabuti na categoria “livro infantil ou juvenil”, obtendo também o ambicionado selo de “altamente recomendável” da FNLIJ — Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. De fato, o livro impresso é uma preciosidade também em termos plásticos: atraente, criativo, colorido, faz da leitura e do manuseio do objeto uma aventura lúdica, com detalhes e mistérios que dialogam com a estratégia nuclear do gênero adivinha: a procura, a decifração. (Houve uma versão digital, adaptada, desse livro, com o nome Abcd de Angela-Lago, que, todavia, não se encontra mais disponível.) Sobre sua obra, há relevantes artigos, dissertações, teses, livros.
Em seu clássico Formas simples, de 1930 (no Brasil, em 1976, na tradução de Álvaro Cabral), André Jolles diz que “não só o adivinhador sabe que a solução é (ou foi) conhecida por outrem, mas essa forma é tal que ele não pode deixar de ter a certeza de que também é capaz de encontrar a solução. Certeza que logo se converte em outra convicção: a de que deve encontrá-la”. O leitor se sente desafiado a entrar no jogo da adivinha, celebrizado na fórmula “o que é, o que é”. No livro de Angela-Lago, cada enigma vem numa página, e só na página seguinte a solução. Há, pois, espaço e tempo para que o leitor (de qualquer idade) possa se dedicar a pensar qual a possível resposta. Embora cada adivinha guarde em si sua autonomia, passo a passo o leitor vai se habituando com certos modos de elaboração da charada e, por extensão, de sua decifração.
De imediato, chama a atenção a “doideira” de um ABC que — em vez de ter “as estrofes começando sucessivamente pelas letras do alfabeto em sua ordem natural” (Houaiss) — se inicia com a letra Z, e depois Y, X, W, V, U, T, até a letra A. São, portanto, 26 “poemas” que, no livro, se distribuem como se fossem duas estrofes. Na transcrição dos poemas acima, o tempo que a adivinha exige, proporcionado pela decisão de adiar o virar da página (enquanto se tenta resolver o enigma), se esboroa. Aqui, comentamos apenas sete das adivinhas: Z, U, S, Q, N, K e B. Fica, desde já, o convite para que o leitor conheça a totalidade dos 26 enigmas.
O livro se abre com uma adivinha cuja decifração parece a chave de outras portas: “O que é o que é, minha prenda,/ a primeira coisa que o zoológico tem/ e tem no meio de qualquer fazenda?/// Zoológico,/ fazenda?/A letra Z.”. A solução passa por entender o caráter metalinguístico da adivinha, considerando que a solução não está “fora”, mas dentro da própria palavra. Em termos hoje em certo desuso, não é no “significado” de zoológico e fazenda que há de se encontrar a resposta, mas em seu “significante”: assim, a “primeira coisa” da palavra zoológico e o “meio” da palavra fazenda se referem à “letra z”. Ademais, já nessa adivinha de abertura, Angela-Lago vai incluir o leitor, convidando-o, desafiando-o a entrar no jogo: “minha prenda”, além de proporcionar a rima consoante com “fazenda”, traz as acepções de “minha amiga”, “querida”, “joia”, “mimo”, “presente”, e também uma acepção antiga de “refém”, “presa”, bem adequada à relação entre a esfinge-adivinha e o édipo-leitor: decifra-me ou te devoro.
Muito engenhosa é a adivinha da letra U: “Pode gritar já, sem dó / o que é que assombração/ usa seis de uma vez só?/// A letra U./ UUUUUU.”. Tendo percebido que as adivinhas se sucedem retroagindo letra a letra, e que agora o enigma do terceto se refere à letra U, pode ser que a “prenda” decifre a pergunta, lembrando-se da onomatopeia que tipifica o gemido ou grito de fantasmas e assombrações, e com o apoio da pista/dica do verso: “pode GRITAR já sem dó”. No livro, há o desenho de uma assombração fazendo o “uuuuuu”, e um comentário com a estilização de cinco letras, formando a palavra “FÁCIL”. Depois da resposta, toda pergunta muda de tamanho.
Talvez a adivinha mais provocadora de todo o livro seja a dedicada à letra S: “Quero ver adivinhar!/ O que falta numa anta/ para ir para o altar?/// A letra S./ S + ANTA = SANTA”. A despeito de possíveis outras leituras, salta aos olhos a ironia (e a coragem!) de insinuar que é uma “anta” (“indivíduo de inteligência limitada; burro, estúpido”) a pessoa que vai ao altar, ou seja, que “se casa” e, assim, se transforma em “santa”, mulher pura e virtuosa. Noutra clave, menos irônica em relação ao casamento, pode-se (tentar) entender que, sendo altar um lugar sagrado, aquela pessoa inepta (anta) está a um passo, a uma letra de se tornar santa — que, além do sentido religioso, carrega também as noções de “inocente, simples, ingênua”. De um jeito ou de outros, a aproximação entre “anta”, “altar” e “santa” aciona interpretações que incomodam contextos e mentalidades ainda hegemonicamente dependentes de imaginários obscurantistas.
Entre as adivinhas mais bem elaboradas: “Responde esta, querida:/ para quem escuta mal,/ qual a letra preferida?/// A letra Q./ Quê?”. O sentido imediato e engraçado se oferece: pessoas surdas (em particular, as que ouvem ainda um pouco) têm o hábito de, para que repitam o que lhes foi dito, dizerem: “quê?”. Com isto, a adivinha se resolve, pois o nome da letra coincide com a expressão utilizada, que pode, conforme a interpretação que se dê, funcionar como interjeição, pronome ou substantivo. Como de praxe, Angela-Lago, além do enigma em si da charada, dá pistas na própria pergunta e aqui a pista comparece no primeiro verso: “Responde esta, QUErida”, em que o “quê” se encaixa. Curiosamente, na classificação dos fonemas, o /k/ (fonema da letra “q”) é surdo, pois para sua emissão as cordas vocais não vibram.
A adivinha da letra N repete a estratégia da letra Z: “O que é que nenhuma tem,/ nada, também, nunca tem sempre,/ ninguém sempre tem?/// A letra N.”. Em todas as palavras (nenhuma, nada, nunca, ninguém) há a letra N. O que causa surpresa é dizer, por exemplo, que “nunca tem sempre”, pois nunca e sempre são antônimos. O segredo é a elipse: ocorre que a palavra “nunca” “tem sempre” a letra N, mas essa informação se elide. Vizinho dessa adivinha, lembremos o chiste que Guimarães Rosa inclui em Aletria e hermenêutica, primeiro dos quatro contos-prefácios de Tutameia: “O que é, o que é: que é melhor do que Deus, pior do que o diabo, que a gente morta come, e se a gente viva comer morre? Resposta: — ‘É nada’.” Voltando às perguntas, e respondendo-as com “nada”, os sentidos — entre literais e metafóricos — vão se costurando.
São muitos e muitos os recursos linguísticos e visuais de que Angela-Lago lança mão em sua belíssima obra Abc doido (há de se, em mãos, tê-la logo). Na letra K, à semelhança da letra Q, a autora inventa nova trama: “Será lá? Será ali?/ Parece cá. Não é aqui…/// A letra K./ K soa como cá!”. Brincando com advérbios de lugar — lá, ali, cá, aqui —, Lago conclui que o som da letra K faz par com o termo “cá”. No livro, há uma pessoa rindo, e de sua boca sai, conforme convenção, uma série de kkkkkkk, indicando que se ri. Que se caçoa?
Por fim, uma adivinha curta e espirituosa: “Adivinha, adivinha, meu bem,/ com dois eu faço um neném./// Com 2 B./ B + B = BEBÊ.”. Angela-Lago, com extrema sensibilidade e competência, explora o aspecto visual das letras. Aqui, o formato da letra B maiúscula lembra a barriga de uma grávida. No livro, a autora ilustra com um casal, em cujas barrigas se justapõe a letra B, e sob ambos a legenda bem-humorada: “dois barrigudos”. Porque, como se antecipa na pergunta, para fazer um neném/bebê se precisa de “dois”. Tal qual, há pouco, vimos que o “quê” da resposta se indiciava no “que” do termo “Querida”, aqui o “bê” da resposta se insinua no “meu BEm” da pergunta, que fala de “dois”, em dois versos, e por duas vezes repete a palavra-chave do livro: “adivinha, adivinha”.
A grande protagonista de Abc doido é a metalinguagem, que é um jogo de dobras na obra, é fazer e mostrar o feito, é velar e (re)velar a coisa: colocar e tirar o véu, o que é também recolocar um novo véu. No dizer de Roland Barthes, em Aula (1978), esse falar “dos signos com signos, é o próprio espetáculo dessa bizarra coincidência, desse estrabismo estranho que me aparenta aos mostradores de sombra chineses, quando esses exibem ao mesmo tempo suas mãos e o coelho, o pato, o lobo, cuja silhueta simulam”. É esse espetáculo que Angela-Lago encena e sintetiza no dístico em alexandrinos com que encerra o livro: “Agora pode falar para toda a gente/ que você sabe o abc de trás para a frente.”. Os leitores vamos descobrindo, letra a letra, que esse abc nada tem de “doido”. É lúdico e lúcido. Se doido é maluco, insensato, também é feliz, entusiasmado, extravagante. (Sim, a letra inicial de “doido” — “d” — dá sequência e graça à expressão “abc”.) Riobaldo, de Rosa, diz às tantas: “Ao doido, doideiras digo”. Angela-Lago, feito o conterrâneo mineiro, doidiz também.
Para sair desse ensaio, entremos no jogo: o que é, o que é: anelo, nalgo, gelo, ela, lona, agá-legal, alô, gol, olé? Eu digo logo, seguindo a letra, sobretudo o hífen: é “Angela-Lago”.