A um itabirano, com amor, de Ricardo Vieira Lima

Uma homenagem e um diálogo com a obra de Carlos Drummond de Andrade
Ricardo Vieira Lima, autor de “Aríete”
02/08/2022

E como eu percorresse atentamente
uma obra de Minas, majestosa,
que ilumina corações e mentes

e devolve ao povo a sua rosa,
descobri que o poeta é, sobretudo,
um exemplo de vida dolorosa.

Mas a vida, como se sabe, é tudo,
e a morte, essa visita derradeira,
pode atrasar, mas chega — não me iludo.

A lição dessa obra é a primeira:
nascemos para amar. O resto é espuma
que se esvai entre todas as besteiras

que dizemos e fazemos. Em suma,
o amor, essa “palavra essencial”,
justifica a vida. Então, nenhuma

outra é mais bonita. Ou mais banal.
Quando o poeta itabirano nasceu,
há cem anos, um coro celestial

de anjos, na verdade, emudeceu.
Porque diante de um ser muito amoroso,
não há anjo, arcanjo ou orfeu

mais puro, mais sagrado, mais zeloso.
Quando o poeta itabirano se foi,
em busca de um amor tão venturoso,

que unia pai e filha, os dois,
irmanados na alegria e na dor,
não sabia que, quinze anos depois,

um obscuro poeta, em seu louvor,
dedicaria estes versos à glória
de um itabirano, com amor.

Amor que não me sai mais da memória.

Em verso de seu livro Raro mar (2006), Armando Freitas Filho sintetizou um sentimento: “Drummond é o cara”. Sentimento que se confirma entre poetas e críticos, e entre leitores em geral, tamanha a presença do gauche em nossa historiografia poética, como tão bem se mostra no estudo Drummond a invenção de um poeta nacional pelo livro didático (2013), de Maria Amélia Dalvi. O mineiro se transformou na própria pedra no sapato: não se pode caminhar sem que a preciosa pedra incomode. Ana Cristina Cesar, em poema lapidar, registrou: “pedra lume/ pedra lume/ pedra/ esta pedra no meio do/ caminho/ ele já não disse tudo,/ então?”. Aos poetas, afetados pela sombra do sagrado, resta lidar com a pedra, burilando-a, educando-a, cada qual com seus modos de dizer. Aqui, Ricardo Vieira Lima escolhe um caminho afim ao caminho do próprio Drummond: a multiplicação — de faces, de mundos, de citações.

Boa parte desses caminhos o autor de Aríete poemas escolhidos (1990-2020), lançado em 2021, esclarece generosamente ao leitor na seção Escrever é cortar poemas (depoimento e notas), em que diz da publicação original do poema em 2002 e de algumas citações: o título, vindo de A um bruxo, com amor (A vida passada a limpo); a terza rima, herdeira de A máquina do mundo (Claro enigma); e um verso da quinta estrofe, extraído de Amor pois que é palavra essencial (O amor natural). Boas e generosas dicas, mas, sob a pele das palavras, há mais, muito mais.

O poema parece, na primeira leitura, que vai seguir a trajetória do sujeito — que, desconfiado, resiste às promessas da “máquina do mundo” —, não só por conta do conhecido esquema rímico de Dante (adotado por Drummond parcialmente, pois dispensa as rimas em aba bcb cdc etc.), mas sobretudo por parodiar o início do consagrado poema: “E como eu palmilhasse vagamente/ uma estrada de Minas, pedregosa,” se transforma em “E como eu percorresse atentamente/ uma obra de Minas, majestosa”. Ricardo mantém o decassílabo e a rima “entre poemas”: vagamente/atentamente, pedregosa/majestosa. Tal qual Drummond faz com Machado, o bruxo do Cosme Velho, Ricardo faz com Drummond, dedicando-lhe amor em versos. A troca de “bruxo” por “itabirano” parece estender ao itabirano o carinhoso apelido de bruxo. Se bruxo é quem faz mágica (mágica com a linguagem), o apelido cabe de fato a ambos. (À dupla, se irmana outro mineiro, Guimarães Rosa: em Um chamado João, Drummond diz “Mágico sem apetrechos”. Lição entre amigos.)

O desejo de percorrer a majestosa “obra de Minas” — e ir com ela dialogando por meio de mil alusões — não elimina o diálogo com alusões a outras mil obras e autores. Na expressão “corações e mentes”, mesmo desligada do filme com título homônimo em português (Hearts and minds, no original), o poema indica que essa obra aciona (“ilumina”) tanto o sentimento quanto o pensamento. Por extensão, para a lida com ela, é necessário um misto de emoção e razão, é necessário movimentar um vasto mundo, fazer com que o amor se disfarce em paixão medida (e os decassílabos são uma parte visível desse disfarce). Se Carlos dá ao mundo A rosa do povo, Ricardo versifica: “e devolve ao povo a sua rosa”, invertendo os substantivos e reforçando a ideia de que o poeta deve, sempre que possível, servir — elaborar uma “poesia para”.

Percorrendo a obra do poeta de Itabira, o poeta de Niterói descobre nele “um exemplo de vida dolorosa” (dor que vai se esclarecer quando, no penúltimo terceto, o poema fala da morte da filha Maria Julieta e, doze dias depois, de Drummond). Contudo, apologético e afirmativo, o poema — então em homenagem ao centenário de nascimento do gauche — celebra a vida, sabendo que “a morte, essa visita derradeira,/ pode atrasar, mas chega — não me iludo”. Aqui, ecoa um clima bandeiriano, lembrando Consoada e a visita: “Quando a Indesejada das gentes chegar/ (Não sei se dura ou caroável),/ Talvez eu tenha medo./ Talvez sorria, ou diga:/ — Alô, iniludível!”. De Bandeira a Ricardo, “chegar” vira “chega” e “iniludível” vira “não me iludo”. (Bandeira e Drummond, também, amicíssimos.)

A quarta estrofe continua o festival de paródias, intertextos e lembranças. Em 1962, se lança Lição de coisas, e Ricardo não perde a deixa: “A lição dessa obra é a primeira:/ nascemos para amar”. Em conhecida crônica, Clarice Lispector declara: “Nasci para amar os outros, nasci para escrever e nasci para criar meus filhos”. Drummond, em Amar, de Claro enigma, concorda: “Que pode uma criatura senão,/ entre criaturas, amar?”. (Carlos, Clarice.) O amar — talvez a maior das inquietudes de Drummond, diria Antonio Candido. Sem amor/amar, “o resto é espuma” — e na palavra “espuma” a insinuação da “écume” do Brinde (Salut) de Mallarmé, poeta que, aliás, se inscreve no majestoso Áporo, mal disfarçado na expressão “sem alarme”. Ricardo Vieira Lima, poeta e ensaísta, parece ter em mente todas essas — e quantas outras? — insinuações. Cabe a cada leitor e seu repertório a decifração dos códigos: trouxeste a chave?

Adiante, o anjo torto, que abre Alguma poesia, obra primeira de Drummond, no Poema de sete faces, compõe um coro no poema de Ricardo. Terceto a terceto, vem-se desenhando a amorosa homenagem. Fala-se, enfim, da filha e do pai, “irmanados na alegria e na dor”, que se foram. Mas ficaram os poetas, entre os quais o “obscuro poeta” que assina o poema — e no termo “obscuro” um misto de modéstia (diante de tanta vaidade da tribo dos poetas) e grandeza (no gesto mesmo de medir-se em face do poeta canônico), além da possível alusão ao “claro” enigma do anagrama Carlos. O verso final, isolado, condensa muitas surpresas: “Amor que não me sai mais da memória”.

Porque Memória, de Claro enigma (1951), é um dos poemas mais admirados e admiráveis de Drummond, é um poema — assim como A um itabirano, com amor — feito em tercetos (aab/ aab/ aab/ aab), com rimas regulares em i-i-ão e em redondilha menor. Recordemos: “Amar o perdido/ deixa confundido/ este coração./// Nada pode o olvido/ contra o sem sentido/ apelo do Não./// As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/ à palma da mão./// Mas as coisas findas,/ muito mais que lindas,/ essas ficarão”. É um poema, se vê, feito o de Ricardo, que fala de amor e, desde o título, de memória. Amor e memória, porque se perdeu o objeto amado, estruturam o poema do autor de Aríete.

O fecho do poema chama a atenção, mesmo visualmente: onde se esperava mais um terceto, vem um monóstico — incisivo: “Amor que não me sai mais da memória”. Também o itabirano não esquece Itabira, de onde vem “a vontade de amar”, e essa memória “dói”, pois que essa ausência segue com ele vida afora. No livro de Ricardo, o poema seguinte fala de Ana Cristina Cesar, para quem Drummond fez o poema Ausência: “A ausência é um estar em mim”.

Tantas conexões sugerem que o eclético paideuma poético e a imensa “variação formal” (Marcos Pasche, no prefácio ao livro) de Ricardo Vieira Lima se assemelham, mutatis mutandis, ao impressionante leque de referências e formas do próprio Drummond. Longe de qualquer pretensão de unanimidade, Drummond, o cara, atrai a simpatia de público e de crítica. O prefácio de Pasche, a apresentação de Italo Moriconi, a caricatura de Caruso, os muitos agradecimentos, a participação na orelha de Saramago, Houaiss, Cabral e Marly, Jorge Amado, Olga Savary, Alexei Bueno, Geraldo Carneiro, Tanussi Cardoso e ainda outros poetas demonstram não só o merecido afeto que Ricardo recebe, mas dão a ver o também impressionante leque da recepção (calorosa, aliás) de seu livro.

O poema é, sim, uma declaração de amor, e é também uma poética, que se quer próxima da poética do objeto/sujeito amado. Poéticas que se transformam em muito mais do que sete faces. O diálogo intertextual e a citação são recursos frequentes desde sempre, e na poesia contemporânea — arena de profissionais — se destacam. Antoine Compagnon diz que a citação é uma metáfora e que “põe em circulação um objeto, e esse objeto tem um valor”. Citar por citar pode ser algo enfadonho, pedante, desnecessário. Quando, contudo, a citação se incorpora com engenho ao poema (seja no poema em foco, seja em tantos outros de Aríete), algo acontece. Como diz Italo Moriconi, “o poeta Ricardo nasce na terra fecundada por esses mestres, mas deles se descola, e decola”, com “cuidado e consciência, disciplina e lucidez”.

A máquina do mundo de Ricardo, com toda a força da “madureza, essa terrível prenda”, sim, se descola e decola. A glória do poeta — pensando em Drummond, “Amor que não me sai mais da memória” — é que agora seu poema, A um itabirano, com amor, fica, também ele, a iluminar corações e mentes, a partir de Aríete, esse “livro essencial”, proparoxítono, excelente síntese da diversidade de nossa poesia contemporânea.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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