[A gente…], de Ana Cristina Cesar

A partir de um provocativo verso da poeta carioca, uma análise da influência da obra de Fernando Pessoa na poesia brasileira
A poeta Ana Cristina Cesar
19/09/2020

a gente sempre acha que é
Fernando Pessoa

É amplamente conhecido o prestígio da obra de Fernando Pessoa no Brasil. Ao lado da reverência ao português modernista, há também um gesto como que de resistência ao espectro do cânone. Marjorie Perloff alerta, em O gênio não original, para o fato de que, “no mundo da poesia, a demanda pela expressão original ainda resiste: esperamos de nossos poetas que produzam palavras, expressões, imagens e locuções irônicas que nunca ouvimos antes”. É a tal demanda que os poetas respondem (ou deveriam responder) quando procuram articular a vontade da “expressão original” à presença incontornável da tradição, presença que se faz visível muitas vezes por meio da citação, em suas múltiplas formas.

Um exemplo de como se dá a lida com a tradição é este curto, galhofeiro, provocante e contundente dístico de Ana Cristina Cesar, pinçado de Inéditos e dispersos (1985): “A gente sempre acha que é / Fernando Pessoa”. O que Ana C. resume em seu poema parece um sentimento, ou, antes, um comportamento algo clicherizado de (em geral) jovens poetas que desejam ser parecidos com o poeta que admiram, no caso, Pessoa. O tom irônico é óbvio. Mais óbvio quando a poeta finge se incluir no coletivo “a gente”, ao mesmo tempo em que se exclui, se considerarmos que “a gente” são os outros. Nesse jogo, ela elucida o que, em seu último depoimento gravado (e registrado em Escritos no Rio), diz: “O que quer dizer ‘olhar estetizante’? Quando você estetiza, quer dizer, quando você mexe num material inicial, bruto, você já constrói alguma coisa. Então, você sai, você finge, é a questão do fingimento novamente. Aí você sai do âmbito da Verdade, com letra maiúscula. Você saca que ela nem existe, que ela nem pode ser transmitida. Na literatura, então, não há essa Verdade”. Se há um poeta conhecido entre nós por ser um “poeta fingidor” (que finge tão completamente, etc.), este é Pessoa.

No Brasil, inúmeros poetas, cada qual a seu modo, elaboraram um diálogo com o célebre escritor português. Nosso poeta-mor, Drummond, por exemplo, fez sua homenagem em Claro enigma, no belíssimo Sonetilho do falso Fernando Pessoa. João Cabral vai, contudo, noutra direção. Em entrevista à Folha de S. Paulo, em 1991, declara, para desagrado de muitos: “O mal que Pessoa fez à literatura é imenso. Aquela coisa ‘inspirada’, caudalosa, criou uma legião de poetastros que acreditam na inspiração metafísica. Até Drummond ficou assim no fim da vida. Sei lá, foi preguiça…”. Coerente, no entanto, tal declaração, se pensada à luz da poética “antissubjetiva”, “antipessoal”, “antilírica”, que, com todas as contradições e os limites que o projeto comporta, Cabral procurou estabelecer para sua obra. De fato, o que se vê à exaustão são poetastros que têm em Pessoa um modelo que acham que seguem ou sutilmente imitam, porque, segundo Ana C., “a gente sempre acha…”.

A presença de Pessoa se pode, ainda, rastrear em poemas de Paulo Leminski (“dava pra ser aí um rimbaud/ um ungaretti um fernando pessoa qualquer; Byron era verdadeiro./ Fernando, pessoa, era falso”), Glauco Mattoso (Simulado), Orlando Lopes (Autopsiucografia), Roberto Piva (Ode a Fernando Pessoa), Felipe Fortuna (Com uma AK-47), Waldo Motta (Mar de tanto sangue e fel), Caetano Veloso (Gosto do Pessoa na pessoa) e tantos outros, como Afonso Henriques Neto, Frederico Barbosa, Sergio Cohn, Inaldo Cavalcante, que citam Pessoa em seus poemas, e evidentemente tais citações se formalizam de modo distinto. O mundo da poesia de Pessoa se assemelha ao sertão de Rosa: “diverso diferente”, como, quase consensualmente, a crítica considera. Essa extrema diversidade encontra correspondência na diversidade de modos com que sua poesia é recebida e citada em nossa poesia brasileira, tornando utópica qualquer tentativa de “unificar” uma compreensão acerca de recepção tão múltipla e complexa.

A esse contexto de “ansiedade da influência” (Bloom) é que pertence e responde o poema de Ana C. Com apenas dois versos e oito palavras, sem título, a poeta sintetiza a um tempo um sentimento e uma prática. Noutras palavras, ela fala desse lugar de cânone que o autor de Mensagem ocupa, e do desejo que os pares-poetas têm em afirmar o parentesco ou intimidade com ele. (Algo semelhante ocorre com a própria Ana Cristina, cuja obra arrebanha uma legião de fãs, críticos e poetas, que sobre ela têm multiplicado poemas e teses — ver estudos de Ana Cláudia Viegas, Annita Malufe, Flora Süssekind, Italo Moriconi, Josely Bittencourt, Luciana di Leone, Maria Lúcia Camargo, Regina Helena Lima, Virgínia Albuquerque, Viviana Bosi.) Em raro, algum poeta ou poema explicita diferença ou desavença com o ídolo luso (ou com a musa-poeta carioca). Sem a radicalidade de Cabral, Ana Cristina Cesar vai, todavia, em sentido afim ao do recifense, pois ambos percebem a vulgarização que a idolatria e a ilusão de semelhança provocam.

O condensadíssimo poema provoca, por sua vez, reflexões de outros quilates: “A gente sempre acha que é/ Fernando Pessoa”. A gente, como se disse, pode ser o suposto “eu lírico”, como qualquer outra gente, outra pessoa, outro poeta. A intensidade do gesto reiterativo se fixa no advérbio “sempre”: sem escapatória, o poeta fraco, jovem, efebo (para usar terminologia suspeita de Bloom), para tentar se firmar na tradição deve se haver com o poeta forte, consagrado, experiente. A mesmice da repetição esbarra, entretanto, na incerteza do próprio móvel: a gente “acha”, isto é, não tem convicção, prova, nada. Em “a gente acha que é”, o verbo “ser” ecoa taxativo: a gente não se parece, não imagina, não imita, a gente “é” o outro, à Rimbaud, sem mediação. Por fim, ironia das ironias, a gente acha que é alguém (“Fernando Pessoa”) que elaborou uma obra cujo alicerce repousa exatamente na ruptura, pulverização e/ou multiplicação da persona poética (íntegra, tradicional, coerente). Achar que se é alguém que se disfarçou incessantemente traduz já o fracasso do desejo. (E, como a crítica já explorou à exaustão, tudo se desdobra e se adensa ainda no fato de o nome da pessoa em vista ter o nome Pessoa, dando margem a dubiedades, trocadilhos, especulações filosóficas em torno do duplo e da alteridade.)

A quebra do verso colabora para o estranhamento e para o efeito-surpresa, pois a “conclusão” da afirmação do verso inicial surpreende. Sentir-se, achar-se o mestre Fernando Pessoa faz da “gente” alguém especial. O problema, a um palmo do bom senso, é que a gente não é Fernando Pessoa. A ilusão esboroa tão rapidamente quanto dura a leitura do curtíssimo poema. Mesmo — pensando de modo um pouco mais sofisticado — que se tenha no horizonte da afinidade o sentimento de, à semelhança de Pessoa e seus heterônimos, se perceber múltiplo, fragmentado, diferente, o fato (o fogo-fátuo) é que é falso o equiparar-se ao monumento que atende pelo nome próprio de Fernando Pessoa, autor de Livro do desassossego (sob a capa de Bernardo Soares).

No entanto, o prazer e a glória do poema de Ana (Ana C., Ana Cristina, Ana Cristina Cesar) vêm exatamente da bem-sucedida espera de que “nossos poetas produzam palavras, expressões, imagens e locuções irônicas que nunca ouvimos antes”. Pessoa realizou tal expectativa, e Ana Cristina nesse poema e no conjunto de sua obra, a seu modo, também. Não se trata de compará-los, pois Ana C. não acha que é Fernando Pessoa. Quem acha isso é “a gente”. (Curiosamente, Pessoa não faz parte do Índice onomástico, de A teus pés, em que a poeta lista 23 nomes de escritores e amigos de algum modo presentes no livro.) Entre a reverência, clássica, e a resistência, crítica, permanece atual o diagnóstico de há décadas de Ana C.: “A gente sempre acha que é/ Fernando Pessoa”. Talvez alguns achem demais, e outros sejam de menos.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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