Sofia Soft: diário

As vespas africanas assassinas estão aterrorizando a região Centro-Oeste
Ilustração: FP Rodrigues
01/07/2020

Domingo
O telefone toca às seis horas da manhã. Seis e seis, para ser mais exata. Eu mal atendo e ela dispara: “Admiro os babacas que conseguem não parecer babaca. Palmas pra eles. Não parecer babaca exige de um babaca concentração e autocontrole sobre-humanos”.

Segunda-feira
Minha avó gostava de contar a história em que ela atravessava distraidamente a Place des Vosges e um vento forte atirou sua sombrinha entre as pernas de Albert Camus, que tropeçou e saiu catando cavaco. Então o escritor se recompôs, fechou a sombrinha e a entregou gentilmente pra minha avó, que disse num francês impecável: “Amar o universo ou amar o humano. Esse é o único problema filosófico verdadeiramente sério, monsieur Camus. Não dá pra amar simultaneamente as duas ideias. Eu, por exemplo, amo o universo. Isso significa que não me desagrada qualquer prognóstico em que a raça humana encontre a extinção. Afinal, mon cher, para a infinita perspectiva do universo, essa insignificante coletividade de primatas terá finalmente cumprido seu minúsculo destino e não fará falta alguma”.

Terça-feira
Pouco antes de morrer, Franz Kafka pediu a um amigo que queimasse todos os seus originais. O amigo não atendeu ao pedido. A posteridade agradeceu. Pouco antes de morrer, meu amigo Frank Zafka me pediu que queimasse todos os seus originais. Taquei fogo. A posteridade me agradecerá.

Quarta-feira
Tenho um Smart Fortwo que eu raramente tiro da garagem. Prefiro usar o transporte público. Quando estou cansada de ficar no apartamento, prefiro caminhar. Numa dessas caminhadas, quando eu ainda morava na rua Apinagés, parei pra descansar num banco do Parque da Sabesp. Tirei da bolsa um romance que estava terminando de ler. Li as últimas páginas, fechei o livro e fiquei meditando. Um casal de idosos exercitava-se perto de mim. Quando a senhora viu a capa do livro largado em meu colo — bons olhos, hein? —, se aproximou, apoiando-se numa atrevida bengala de madeira com cabo de marfim, e perguntou em que parte eu estava. Eu respondi que havia acabado de ler o livro. Ela perguntou o que eu tinha achado. Pensei um pouco e respondi:

Uns mais outros menos, todos os grandes artistas e escritores disseminam herdeiros. Não epígonos, mas herdeiros: continuadores notáveis. Franz Kafka disseminou poucos. Eu mesmo conheço apenas um: Giorgio Manganelli, atualizador de Kafka especialmente na espantosa coletânea Centúria: cem pequenos romances-rio. Por algum tempo eu achei que China Miéville também fosse um legítimo herdeiro de Kafka. Miéville não inventou a palavra desver, mas foi o escritor que melhor elaborou esse conceito numa obra literária. A cidade & a cidade é um romance distópico que faz avançar o pesadelo kafkiano desdobrado em O processo e O castelo.

Que audácia… Reunir no mesmo espaço geográfico duas cidades rivais, cruzando suas áreas públicas e particulares, mas obrigando os cidadãos de cada cidade a ignorar totalmente (desver) as áreas e os cidadãos da cidade cruzada, sob pena de exílio ou morte ordenados por uma autoridade chamada Brecha, onipresente e onipotente, invisível e insondável — apenas Kafka teria pensado nisso, se vivesse em nossa época. Suspeito que Borges também. Lembro que, por sorteio, cidadãos são declarados invisíveis, no conto A loteria em Babilônia. Ninguém pode interagir com eles. Robert Silverberg gostou tanto dessa premissa, segundo ele “mal aproveitada por Borges”, que a desenrolou num conto inteiro: O homem invisível.

Esse tipo de loteria não existe em Beszel e Ul Qoma. Mas um pouco do antigo método babilônico de invisibilidade chegou até nós. Os habitantes da cidade e da cidade aprendem a desver desde criança. Logo a prática se torna um hábito e o hábito se torna um instinto. Esse código existencial é a força insólita do romance. Nas calçadas e nas avenidas cruzadas os pedestres e os automóveis de Beszel passam a centímetros dos pedestres e dos automóveis de Ul Qoma, sem se notarem nem se tocarem de forma alguma. Sob a vigilância total da Brecha.

O romance de Miéville é sobre uma investigação kafkiana, em parte também borgeana. Uma pesquisadora universitária foi assassinada. Talvez exista uma terceira cidade, ultrassecreta: Orciny. “Eu acho que Orciny é como a Brecha chama a si mesma”, diz uma personagem. Incertezas. Arqueologia profunda. Um progressivo mistério-matriusca.

O processo e O castelo são literatura-arte.

Dividido em três partes e uma coda, A cidade & a cidade é duas partes literatura-arte e uma parte (e uma coda) literatura-artesanato. Na primeira parte (Beszel) e na segunda (Ul Qoma) a atmosfera opressiva adensa-se. O absurdo cartesiano confunde e neutraliza qualquer potência de liberdade. Todos os personagens são menores que o sistema, muito menores que o mistério. Mas na terceira parte (Brecha) e na coda as respostas surgem, serelepes. O protagonista e o leitor conquistam conhecimento, isso quer dizer que o enredo e a experiência da leitura perdem um pouco do vigor. Explicações demais, organizadas demais, me incomodam. Por algum tempo — mais ou menos duzentas e trinta páginas — China Miéville foi um legítimo herdeiro de Kafka. Ou ao menos eu achei que China Miéville também fosse um legítimo herdeiro de Kafka. Suposição egoísta e elitista… Miéville jamais disse que seu desejo era ser um legítimo herdeiro de Kafka.

A senhora da atrevida bengala de madeira com cabo de marfim escutou educadamente cada palavra. Quando terminei de falar, notei que seu rosto estava inchado e vermelho. Ela estava furiosa. Erguendo a bengala, ela gritou: “Que vergonha! Vá embora. Vá embora e não volte mais”. Seu marido precisou acalmá-la. Lembro que, um pouco confusa, levantei e andei rapidinho na direção do portão, sem saber exatamente em que cidade eu estava.

Quinta-feira
Aconteceu ontem à tarde. Minha mãe fez café e um enorme bolo de fubá. Depois de colocar na mesa as xícaras, os pratinhos, os guardanapos, os talheres, a geleia de morango, a cafeteira e a travessa com o bolo de fubá realmente enorme, ela parou um minuto, pensativa, virou pra nós e disse: “A sociedade deve parecer um show de horrores pra quem fica em casa, quietinho, estudando Lógica (harmonia de raciocínio, falácias etc.), e então abre a janela pra escutar o que — e a maneira como — as pessoas estão debatendo, de que modo andam articulando até mesmo os temas mais sérios e urgentes”. Ela serviu-se uma xícara de café e disse: “Estou sentindo um dó muito comovido mesmo, entendem, do pobre-diabo do Wittgenstein, ah, tadinho, até hoje tão sozinho, sem quase ninguém pra conversar, exceto umas poucas orquídeas de estimação…”

Sexta-feira
Ela chegou com duas garrafas de um cabernet chileno e duas pizzas grandes, uma de atum e a outra também de atum, porque a gente é tarada por pizza de atum. Depois da mesa e da cama, no banho ela me falou um pouco sobre o trabalho e a faculdade. “Não me acho muito inteligente. Só me acho a pessoa mais inteligente do planeta. Tipo Sócrates, entende? Eu não sei nada, mas todas as pessoas que eu conheço que se gabam de saber alguma coisa também não sabem nada, e nem isso sabem.”

Sábado
Início do verão. Almoço no vegetariano. Sua fala ficou congelada entre nós dois, na altura dos olhos, quando eu o interrompi, comentando vagamente sobre as vespas africanas assassinas que chegaram na semana passada e estão aterrorizando a região Centro-Oeste.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho