Em busca de um nome digno

As famílias literárias contrárias e complementares
Ilustração: Teo Adorno
30/08/2019

A primeira coisa que vem à mente, quando observamos uma livraria ou uma biblioteca, é que a literatura (ficção e poesia) se divide em pelo menos duas famílias contrárias e complementares.

Contrárias porque defendem e exercitam valores opostos.
Complementares porque se iluminam, se desafiam, uma só existe em relação à outra.

De um lado há a família aristocrática das obras que perduram: os clássicos antigos e modernos. Essa família é chamada de literatura-arte. Dela também fazem parte as obras contemporâneas mais ambiciosas, que não disfarçam o anseio de um dia ser canonizadas. Dizem que são obras para leitores-escritores e leitores-literatos.

De outro lado há a família democrática das obras transitórias: os livros que nunca serão canonizados, nunca se tornarão clássicos, mas interessam a um grande número de leitores. Dizem que são obras para leitores-leitores. Essa família é chamada pejorativamente de literatura de massa ou literatura de entretenimento.

O contrário complementar do vírus é o anticorpo.
O contrário complementar da noite é o dia.
O contrário complementar do macho é a fêmea.
O contrário complementar da morte é a vida.
E o contrário complementar da literatura-arte?
É a literatura-artesanato?

Certas coisas são difíceis de nomear. Por exemplo, essa literatura que não é a literatura-arte, mas é seu legítimo contrário complementar.

Literatura-arte. O que esse substantivo composto nomeia?

Certamente toda a literatura que é também invenção, que não segue um dos vários modelos já existentes, que é a realização de uma ideia original, que inaugura uma nova tradição. Para leitores-escritores e leitores-literatos, como já foi dito.

Literatura-artesanato, ao contrário, é a literatura que não pretende realizar uma ideia original, mas busca seguir bem um dos vários modelos consagrados pela tradição. Para leitores-leitores, como já foi dito.

Porém, na opinião de muita gente a palavra artesanato e o trabalho realizado pelo artesão são menos valiosos do que a palavra arte e o trabalho realizado pelo artista. É essa suposta desigualdade hierárquica que estraga a noção que eu procuro: a noção de que, em qualquer cultura, arte e artesanato são igualmente valiosos e complementares.

É preciso evitar o preconceito.

É preciso entender que a literatura-arte e a literatura-artesanato são contrários complementares, de igual intensidade e importância.

Confesso que ainda estou procurando outra palavra pra caracterizar essa literatura que é historicamente o contrário complementar da literatura-arte…

Literatura popular não serve, pois a cultura popular (expressão genuína dos costumes e das tradições de um povo) é outra coisa bem diferente. No campo da música o adjetivo popular funciona muito bem, pois me permite falar em música erudita e música popular. Mas no campo da literatura esse adjetivo indica, por exemplo, a literatura de cordel, os causos, as anedotas, as lendas e os mitos.

Literatura de entretenimento também não serve, pois indica um traço superficial, uma vez que o entretenimento, em nossa cultura do tempo é dinheiro e da apologia do trabalho árduo, é visto como simples distração, perda de tempo.

Literatura de massa também não serve, pois indica a literatura de baixa qualidade produzida em larga escala pela chamada indústria do entretenimento, para um público amplo, mas pouco exigente.
Literatura-padrão?
Literatura-consenso?
Literatura-modelo?
Literatura tradicional?
Literatura democrática?

Nenhuma dessas alternativas soa muito bem. Todas desafinam.

Fiquemos por enquanto com literatura-artesanato (que também não soa muito bem), pra designar essa literatura igualmente vigorosa, de qualidade própria, produzida para leitores-leitores, literatura que não fica nada a dever à literatura erudita, estética, de invenção, aqui batizada de literatura-arte.

As duas famílias podem ser representadas por duas pirâmides posicionadas lado a lado. As obras-primas de cada família formam o topo da pirâmide, as obras menos interessantes formam o corpo e as obras medíocres formam a base da pirâmide.

Teoria do leitor flácido
Arte e literatura são iguais a comida. Tem gente que só consome fast food, fritura, costelinha de porco, bolacha recheada, pudim, sorvete, refrigerante, cerveja etc. Mas quando oferecem verduras, legumes e frutas: “Ah, esses vegetais metidos a besta são superestimados”.

Arte e literatura são iguais a malhação. Tem gente que só aguenta uma caminhada no parque ou uma leve sessão de alongamento. Mas se pedem que faça umas flexões, uns abdominais e puxe uns pesos: “Ah, esses exercícios metidos a besta são superestimados”.

A potência de um leitor deve ser avaliada pelo nível de complexidade dos bons livros que ele já leu. Leitores que só compreendem e apreciam livros simples e agradáveis, sem nunca terem compreendido e apreciado nenhum livro complexo e cansativo, são leitores simples e sedentários. Qual foi o livro mais complexo e cansativo que você já compreendeu e apreciou, ó hipócrita leitor, meu igual, meu irmão?!

Cachorros & gatos
Livro-cachorro: abana a cauda, busca a bolinha, faz festinha, quer carinho desesperadamente, quer ser nosso melhor amigo.

Livro-gato: um oráculo de outra dimensão, misterioso e insondável.

Mentira & verdade
A mentira da ficção é mais verdadeira que a verdade do jornalismo e da historiografia porque a realidade não é real, é uma convenção social cuidadosamente ajustada. Os textos mais realistas (mais verdadeiros) são os que denunciam o autoengano social dessa irrealidade cotidiana. O ficcionista que pouco se afasta do núcleo da veracidade objetiva, de natureza jornalística ou historiográfica, tende a produzir falsificações da realidade. Se quiser ser verdadeiro, fantasie.

Idioma
Vivo numa cidade deserta. Numa cidade fantasma. Acreditem, a solidão é gigantesca. Passeio horas, dias, por avenidas abandonadas, investigando velhos edifícios. Se dou sorte, encontro uma assombração antiga. Ou duas. Murilo Rubião, José J. Veiga. Conversamos. Aproveito pra exercitar o único idioma que eu conheço. O diabólico idioma do insólito. Às vezes a visagem de Victor Giudice também aparece.

O país & o país
Essa ideia salvadora me ocorreu agora.

Todos sabem que detesto governos centralizados e centralizadores.

No romance A cidade & a cidade, de China Miéville, duas cidades gêmeas, mas antagônicas, ocupam o mesmo espaço geográfico. São cidades independentes, treinadas psicologicamente pra não enxergar a outra cidade.

Em nome da sensatez, proponho que o Brasil se torne o país & o país: dois governos independentes ocupando o mesmo espaço geográfico, mas ambos treinados pra não cometer o pior dos crimes: enxergar o outro governo.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho