A Folha de S. Paulo (23/10/2005) noticiou: pesquisa coordenada pela professora de Literatura Brasileira Regina Dalcastagnè, do Departamento de Teoria Literária e Literaturas do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília, revela: “Os personagens dos romances brasileiros contemporâneos são homens, de classe média e moram em cidades, e negros, mulheres, velhos e pobres têm pouca ou nenhuma voz. Em números: 62,1% dos personagens são homens; 79,8% dos personagens são brancos (contra 7,9% negros e 6,1% mestiços); 73,5% dos personagens negros são pobres”. O professor da USP Alcides Villaça questionou a validade da pesquisa, dizendo: “Eu ficaria espantado se o resultado tivesse sido outro”. Disse ainda: “Se a literatura tivesse sido, desde o início, espelho das virtudes desejáveis, não se teria recomendado a expulsão dos poetas da república. E os estudos literários se organizariam como um ramo positivamente exemplar da pedagogia”. Bom, com todo respeito, eu discordo do ponto de vista do professor. Na minha modesta opinião, a pesquisa da professora da UnB é bastante válida — é um termômetro que avalia ideologicamente (e por que não?) a posição de nossos narradores contemporâneos. Talvez o recorte da pesquisa, restringindo-se a romances publicados entre 1990 e 2004, é que seja um pouco discutível, haja vista, por exemplo, o grande impulso do conto recentemente. Um conto — e, é claro, estou falando o óbvio — pode ser mais significativo do que um romance. Pode ser um “resumo implacável de uma certa condição humana” ou mesmo um “símbolo candente de uma ordem social ou histórica”, conforme Julio Cortázar. Quer um exemplo de contista que poderia perfeitamente entrar na pesquisa da professora e ficar ao lado de Paulo Lins (Regina Dalcastagnè afirma que a partir de Cidade de Deus houve “uma preocupação dos novos autores em trazer personagens que estavam à margem da sociedade. Ele [o romance do escritor carioca] abriu algumas frentes que ainda não estão completamente preenchidas”)? Quer um exemplo? Dalton Trevisan e seu conto Maria, sua criada, que abre o livro Rita Ritinha Ritona (Record, 2005). O conto é narrado do ponto de vista de uma empregada doméstica negra, que, saindo do Nordeste (nasceu num mocambo do Recife), vai parar no Rio de Janeiro e, depois, em Curitiba. A protagonista, Maria das Graças, tem muita personalidade. Padece horrores: mora em várias residências, é estuprada, mãe solteira, e chega a dormir no chão de uma sacada. Mas, decidida, enfrenta todas as dificuldades, chegando, com o dinheiro que guarda (“tinha sempre o meu dinheirinho”), a pôr a filha mais nova na universidade (consegue também uma bolsa de estudo para a mais velha, que termina se casando com um dentista). Se os nossos romancistas recentes “representam de forma estereotipada as classes sociais e étnicas menos privilegiadas”, como indica logo no início a matéria da Folha, eu diria que um contista como Dalton Trevisan navega contra essa corrente. Maria das Graças (que em certos momentos lembra a Mocinha do conto Viagem a Petrópolis, de Clarice Lispector), mesmo na sua penúria, talvez seja uma das representações mais fortes e afirmativas do negro na literatura brasileira contemporânea. Uma bela e paradigmática personagem.