O conto Negrinha, de Monteiro Lobato, fala de uma menina de sete anos que, órfã, fica aos cuidados da antiga patroa da mãe. Trata-se de um retrato impiedoso da violência e da desqualificação extremada que os negros sofreram (e uns tantos ainda sofrem) nas relações com os brancos. No conto, o indivíduo negro é tratado, como indica o próprio narrador, como “coisa humana”. Para lê-lo bem, é preciso entender justamente o ponto de vista do narrador. É um narrador que, como primeira característica, é desabrido — testemunha sem meias palavras, apresentando com detalhes precisos, fortes, as situações vividas pela criança na casa de D. Inácia, uma senhora que não aceitou quando foi instituído e continua sem aceitar o fim do regime escravocrata. D. Inácia, na narrativa, representa uma mentalidade — uma posição ideológica e de classe. O traço que mais se destaca do narrador é a ironia com que caracteriza D. Inácia, fazendo o leitor de pronto aderir e/ou ter empatia pela criança maltratada. Na relação de D. Inácia com o Padre — relação marcada pela hipocrisia de ambos, sobretudo do padre, figura interesseira, bajuladora — o narrador não mede o sarcasmo, por exemplo, ao se referir à D. Inácia como “Uma virtuosa senhora […] — ‘dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral’”, conforme palavras do padre. A crueldade com que a criança é tratada fica bem exposta nos apelidos que ganha vivendo com D. Inácia — “Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata choca, pinto gorado, mosca morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa ruim, lixo”. Por ser minucioso no retrato do sofrimento da criança e por ser cáustico com D. Inácia, o narrador termina fazendo uma forte denúncia contra a escravidão e a mentalidade que a sustenta. O momento mais lírico e menos cru do conto é na cena em que Negrinha fica enlevada por receber e poder brincar por algum tempo, inclusive no jardim, com a boneca das sobrinhas ricas de D. Inácia. O tom, amistoso, afetivo, com que o narrador descreve a cena, dotando a criança de sentimento pela comoção com que ela manuseia e se emociona e vibra com o brinquedo — o tom faz com que o leitor adira ainda mais à perspectiva de Negrinha, se sensibilize com o drama da menina. Está, portanto, no ponto de vista do narrador a força desse conto, que, de tão cruel, comove e desestabiliza o leitor, tirando-o de sua zona de conforto, fazendo-o, mais do que ter empatia pela menina, refletir sobre, nos termos do próprio narrador, essa “dura lição da desigualdade humana” que é a situação de Negrinha na trama.