O narrador do conto O anão, de Rubem Fonseca, recobre desvantagens pessoais com vantagens utilizando, no fim, duas estratégias para que o leitor o acolha: a comicidade e o sentimentalismo. A comicidade: o narrador registra (com uma linguagem enfática, não raro obscena) a sua virilidade, o seu furor sexual com Sabrina e Paula — registra de forma jocosa, provocando no leitor riso, descontração. O sentimentalismo: quando de sua relação com Paula, o narrador se revela apaixonado, comovido com a beleza da mulher, com o que ela passou a significar para ele. Demonstrando insegurança e o temor de perdê-la, transmite então uma intensidade que gera no leitor certa piedade, certa condescendência. A mesma piedade/condescendência volta no desfecho do conto, quando o narrador, o anão morto na mala, se encontra triste e sozinho em casa — sem Paula (“a mulher que eu amava loucamente”), sem Sabrina e sem o anão (“o único amigo que eu tinha no mundo”). O narrador, assim, com comicidade e sentimentalismo, consegue aplacar ou desarmar a atenção do leitor para algo bastante sério: ele é um criminoso. E que crimes o narrador-protagonista de O anão cometeu? São três: 1) é ele quem mata Sabrina, ao dar-lhe “um repelão” que a faz rolar escada abaixo; 2) é ele quem, na morte de Sabrina, cria um álibi, dizendo-se ausente da cena do crime — e, assim, burla a autoridade policial; 3) é ele quem mata o anão: esgana-o e, em seguida, coloca-o dentro de uma mala. Conclusão: se nós, leitores, achamos graça do narrador-protagonista do conto, se desarmamos a nossa atenção para os crimes cometidos por ele, ou se, de forma alguma, consideramos tais crimes — isso tem a ver com o modo como o narrador nos conta a sua história. Um modo que é o do despiste, da tapeação. Nesse sentido, Rubem Fonseca faz, com o conto, uma leitura bastante pertinente da vida brasileira na contemporaneidade. As fake news, as inverdades que tomam conta do nosso cotidiano, das interações interpessoais — tudo isso vai de encontro a esse tipo de narrador: um narrador da burla, da trapaça. Um narrador que, como indicado acima, cria de propósito efeitos — através da comicidade e do apelo sentimental — para atenuar ou mesmo encobrir o que efetivamente ele é: um indivíduo violento, um criminoso.