O capítulo Documentário, o primeiro do romance A festa (1976), de Ivan Ângelo, tem como princípio composicional a inserção do discurso histórico no discurso fictício (a fragmentação radical é o princípio composicional de todo o livro). Assim, temos fragmentos de situações fictícias mesclados com registros históricos extraídos de várias publicações, algumas delas consagradas. As situações fictícias envolvem a rebelião dos nordestinos na estação ferroviária de Belo Horizonte e ainda a construção do personagem de Marcionílio de Mattos, líder da rebelião, que vai ser preso e, ao tentar escapar da prisão, morto pelos policiais. Já nos registros históricos são coletados trechos de obras de autores como Robert Avé-Lallemant, Gilberto Freyre, Euclides da Cunha, Teodoro Sampaio e Rui Facó. São coletados ainda trechos de um depoimento, de um registro de nascimento, de um relatório de um coronel, subchefe de gabinete da Presidência da República, de um relatório de um sindicato patronal, de um manifesto de um sindicato de trabalhadores rurais, de artigos de jornais, de reportagens, de pronunciamentos presidenciais de Garrastazu Médici; há até um trecho da canção Asa Branca, de Luís Gonzaga e Humberto Teixeira. Buscando um efeito de verdade histórica, são feitas colagens de todos esses trechos no enunciado ficcional. Logo, o romance se abre já colocando o leitor de frente com a história brasileira, com o atraso do país. O romance se abre já intentando debater ou até mesmo interpretar o país. O que há em comum nesses registros históricos é a referência às classes sociais brasileiras, com destaque para as seculares condições de vida do sertanejo pobre, do flagelado, do miserável. Há ainda a referência a tipos que buscaram historicamente atuar no sertão tentando atenuar o sofrimento do povo e/ou mesmo conscientizá-lo politicamente (caso de Lampião, Luís Carlos Prestes, Francisco Julião). A inserção desses trechos fortalece e é base para o efeito crítico corrosivo, ao final do capítulo — pois a morte, por agentes do Estado, de Marcionílio de Mattos, após ele tentar organizar a massa faminta em Belo Horizonte, é, metaforicamente, a morte das inúmeras investidas que houve na história brasileira para tentar superar o nosso atraso, para combater a penúria do povo. Investidas, em última instância, sempre inviabilizadas pela violência do Estado e/ou do mais forte. Eis, e tendo-se como princípio formal uma fragmentação bem conduzida, bem elaborada, uma leitura do país.