Um esboço do nosso autoritarismo

Conto de Machado de Assis apresenta personagem que tenta impor suas ideias a qualquer custo
Machado de Assis, autor de “Quincas Borba”
01/09/2023

Na cena inicial do conto O espelho, Machado de Assis faz um esboço formidável do nosso autoritarismo. Na forte ironia do narrador, são “quatro ou cinco cavalheiros” que, numa casa no morro de Santa Teresa, debatem “várias questões de alta transcendência”; são quatro ou cinco “investigadores de coisas metafísicas” e que estão ali “resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo”. Jacobina logo irá se destacar entre os cavalheiros por sua posição de, além de praticamente não dar ouvidos aos demais, se negar a debater as tais “questões de alta transcendência”. Jacobina, em certo momento intervindo na discussão, partirá para desenvolver a sua teoria (ou “esboço de uma nova teoria”, conforme o subtítulo do conto) da alma humana. Mas, antes disso, é colocada, na conduta de Jacobina, algo crucial para entendermos muitas das posturas autoritárias em nossa sociedade. Entendendo que a conjetura e a opinião geram “dissentimento” (dissenção, divergência) e que os serafins e querubins (anjos da primeira hierarquia) “não controvertiam nada” e, por isso, “eram a perfeição espiritual e eterna”, Jacobina entra em total desacordo com a dialética, não aceita o debate. O método dialético, sabemos, tem uma centralidade na história do pensamento, da busca da verdade. A teoria exposta por Jacobina acerca da natureza da alma humana é francamente uma proposição exposta como uma lei universal, mas que, na verdade, é a opinião, é o modo de ver de um indivíduo que toma uma narrativa própria para ilustrar tal proposição. Porém um indivíduo que impõe, aos demais que passam a ouvi-lo sem direito à réplica, o seu ponto de vista, a sua verdade. Jacobina, antes e no decorrer de sua exposição, assume o posto da figura autoritária. Não que a sua teoria não seja engenhosa, ele que, segundo o narrador, é um indivíduo “astuto” — mas é mesmo a teoria de um egocêntrico, de alguém que está por cima e que entra em quase desespero ao privar-se de sua “alma exterior” (ou seja, o olhar externo que prestigia, aplaude, ou, conforme o próprio narrador, os “carinhos, atenções e obséquios” vindos dos outros). Importa no conto de Machado não só o teor da teoria de Jacobina, mas também o expediente que o protagonista escolhe para expô-la. O de um indivíduo, repita-se, que não quer ouvir o(s) outro (s) para, sendo a voz dominante, soberana, impor a sua convicção. Jacobina, é bom não esquecer, à época em que os fatos que narra para explicar a sua teoria se sucederam, fora nomeado para um posto militar — o de alferes da Guarda Nacional. E essa reminiscência, no conto, diz muito.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho