A terra em pandemia (Mondrongo, 2020), do baiano Aleilton Fonseca, é, em língua portuguesa, provavelmente o principal poema deste período lúgubre. A força do poema, o vaticínio que ele formula, já está na epígrafe, nos versos agudos extraídos das Metamorfoses de Ovídio: “E amanhã não seremos o que fomos,/ nem o que somos”. No futuro, qualquer cidadão do mundo que queira obter informações sobre a pandemia do coronavírus, vendo-a da ótica de um brasileiro, terá no poema de Aleilton uma das fontes mais preciosas. Trata-se, de fato, de um poema sólido, na forma, recortada em refinada intertextualidade (além de Ovídio, Thomas Mann, Baudelaire, Descartes; a Bíblia, mitologia grega), e no teor, carregado de imagens definitivas do nosso tempo. A origem e a disseminação do vírus mundo afora; a alteração no cotidiano das cidades; a recomposição dos orçamentos das nações; o imperativo do investimento em saúde pública; a derrocada das economias; a insanidade de governantes impiedosos. O vírus se alastrando pelo mundo ganha do poeta este registro aterrador: “Ainda não te enxergam fatal. E tu aportas em Singapura./ Pequim cancela as festas. O Ano Novo Lunar já não traz alegria./ Em teu nome, erguem-se templos de campanha, servos de branco para te conter./ Qual turista em férias, passas em Hong Kong, vais do Canadá ao Nepal./ A China proíbe passeios na muralha, e tu já circulas em Sri Lanka./ Espanha, Portugal e França resgatam os seus filhos na cidade de Wuhan”. Aqui se chega a um eixo central do poema — as imagens do Brasil e do seu presidente despropositado, improvidente. E, sobretudo, impiedoso, conduzindo o país a um verdadeiro genocídio. E, aflitivas, irrompem as imagens da pandemia propagando-se pelo país: “E tu vais aqui te alastrar. E brecar o samba, e matar a bola/ E parar a dança e ocupar os campos e ruas e avenidas para nos matar./ Dos condomínios para as favelas; das mansões para os barracos,/ Das madames às domésticas; dos patrões aos empregados,/ Dos clientes aos funcionários, dos filhos aos pais, dos netos aos avós,/ De vizinho a vizinho: — o sopro da morte, de pulmão a pulmão:/ ‘De repente é aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil deu a mão’”. Poesia comprometida ao extremo. Contestadora do bolsonarismo (o presidente brasileiro é batizado de “o indigitado”) é a seção “O desfile das infâmias”. Vale a pena reproduzir uma de suas estrofes: “E brandiam tochas e farpas. Agrediam as portas da Justiça,/ A velha senhora, acuada e temerosa, diante do vil linchamento./ Incendiários do apocalipse tropical, seguidores do indigitado,/ contaminar as ruas e os dias com secreções mentais./ A arma entre o indicador e o polegar atira contra a razão./ O vírus atravessa por entre seus gritos, em vil comunhão./ Quais dessas criaturas irão sucumbir à própria loucura?/ Pobres defensores da besta, meros viventes da terra plana./ Caricatos cavaleiros da discórdia, da balbúrdia, da dissolução,/ Atores da farsa dos servos da legião, os pactários do caos!”. O tom de crônica histórica do poema atenua a dicção por vezes elevada, até retumbante. E se Castro Alves teve na escravidão o seu impulso para condenar, no Navio Negreiro, uma situação de imensa injustiça, Aleilton Fonseca não só expõe, em A terra em pandemia, impasses/inquietações incrustadas neste momento na alma do planeta, mas também esbraveja contra a incivilidade/insanidade que representa, para o Brasil, a Era Bolsonaro — equiparada no poema à insolente/desaforada Era Trump.