Iona Potápov é o nome dele. Um personagem à procura de alguém com quem dividir a dor de uma perda… O começo do conto Angústia, de Tchekhov (Lendo Tchekhov, tradução do russo de Tatiana Belinky — Ediouro, 2005), já traz alguns índices de intensa amargura. Anoitece. A neve girando ao redor de lampiões, caindo sobre telhados. Iona Potápov está curvado, “tão curvado quanto é possível curvar-se um corpo vivo”. Iona é cocheiro, um homem simples, e o imobiliza a melancolia. De tal modo que, “se toda uma avalanche se despencasse sobre ele”, nem assim “ele acharia necessário sacudir a neve”. Uma égua junto ao cocheiro está “mergulhada em meditações”. Homem e animal flagrados na mesma situação — imóveis, com os corpos cobertos de neve. A ação principal do conto se passa durante a noite, nas sombras de São Petersburgo: “…eis que a sombra da noite desce sobre a cidade”. O ambiente, portanto, refletindo a dimensão soturna do personagem. De tão próximos, os movimentos do cocheiro correspondem aos movimentos da égua: “o cocheiro estala os lábios, estica o pescoço; […] a eguazinha também estica o pescoço”. Com a chegada de um militar querendo ir a Viborgskaia, manifesta-se o atabalhoamento do cocheiro, que inicialmente quase se desvia do trajeto. Ao militar falastrão, e após alguns solavancos, Iona Potápov, numa fala reticente, que primeiro dá giros, diz: “— É que… patrão… coisa… o… meu filho… e finou esta semana”. O militar quer saber como foi a morte do filho de Iona. O cocheiro informa: “— E quem sabe lá! Vai ver, foi a febre… Ficou três dias no hospital e se finou… É a vontade de Deus”. Mas o militar não tem interesse na história do outro, “não está disposto a escutar”. Depois de ficar em Viborgskaia, o cocheiro e o animal voltam a ficar paralisados na neve: “De novo, a neve úmida tinge de branco a ele e à sua égua”. Então chega um grupo de três jovens alegres e beberrões — dois “compridos” e um “baixo e corcunda”. Iona os transporta. Durante o percurso, o corcunda goza do gorro do cocheiro, reclama da indisposição da égua: “Chicote nela!”. Acha a viagem desconfortável, irritando-se constantemente: “Deus meu, palavra que não agüento mais viajar assim! Quando é que nós vamos chegar?”. Após alguns minutos e impropérios, mais uma vez o cocheiro tenta contar da morte recente do filho. O jovem corcunda apenas lhe diz, depois de um acesso de tosse: “— Todos vamos nos finar…”. Iona, entretanto, insiste, querendo dar detalhes de como o filho faleceu — “mas aí o corcunda suspira aliviado e declara que, graças a Deus, eles já chegaram”. Novamente o cocheiro com sua égua, agora angustiado por, na cidade, não ter ninguém para ouvi-lo: “Os olhos de Iona correm aflitos e martirizados pelas turbas que se agitam de ambos os lados da rua: não haverá no meio desses milhares de pessoas ao menos uma que quisesse ouvi-lo? Mas as turbas correm sem notá-lo, nem a ele, nem à sua angústia”. O narrador anota ainda: “Dirigir-se aos homens, ele [Iona] já considera inútil”. É dramática a cena em que Iona, no dormitório, em vigília, tenta falar de seu filho para um cocheiro moço que acordara para beber água. O rapaz, entretanto, indiferente, cobre-se para dormir. Internalizando o foco, o narrador faz aqui um registro pungente da dor do personagem: “Logo vai fazer uma semana que o filho morreu, e ele ainda não conversou direito com ninguém… É preciso conversar com vagar, com calma… É preciso contar como o filho ficou doente, como sofreu, o que disse antes de morrer, como morreu. É preciso descrever o enterro e a viagem ao hospital para buscar a roupa do defunto”. A essa altura do conto já verificamos que apenas a égua dá mesmo sinais de compreender o cocheiro: “E a eguazinha, como que lhe adivinhando o pensamento, põe-se a correr a trote miúdo”. E é para ela, afinal, que Iona termina confiando o seu drama. A mesma estratégia que vinha adotando para conversar com os homens, ou seja, de usar uma frase ou comentário introdutório e aparentemente despretensioso para poder falar do filho, Iona adota com a égua: “— Mastigas? […] Mastiga, anda, mastiga… Se não ganhamos para a aveia, comeremos palha… Pois é… Já estou velho para este trabalho… O filho é que devia trabalhar, e não eu… […] Assim é, mana eguazinha… Não temos mais Kusma Ionitch… Foi-se desta para melhor… Pegou e morreu, à toa…”. Só no animal o cocheiro tem apoio, só ele lhe dá ouvidos: “A eguazinha mastiga, escuta e esquenta com seu bafo as mãos do dono… Iona se deixa arrebatar e conta-lhe tudo…”. É significativo esse detalhe do bafo, calor reconfortante que vem das entranhas como se uma manifestação da alma do animal. Tchekhov parece abrir todo um caminho na narrativa moderna em que, numa situação-limite de solidão, na cidade ou no campo, homem e animal se acolhem, nivelando-se. Na literatura brasileira (por exemplo, no capítulo 3 de O quinze, de Rachel de Queiroz, quando o vaqueiro Chico Bento, por causa da seca, solta o gado do curral para este morrer à míngua), há momentos em que o animal sente como o homem e o homem age como animal.