Um conto forte de Tchekhov

Iona Potápov é o nome dele. Um personagem à procura de alguém com quem dividir a dor de uma perda
01/08/2007

Iona Potápov é o nome dele. Um personagem à procura de alguém com quem dividir a dor de uma perda… O começo do conto Angústia, de Tchekhov (Lendo Tchekhov, tradução do russo de Tatiana Belinky — Ediouro, 2005), já traz alguns índices de intensa amargura. Anoitece. A neve girando ao redor de lampiões, caindo sobre telhados. Iona Potápov está curvado, “tão curvado quanto é possível curvar-se um corpo vivo”. Iona é cocheiro, um homem simples, e o imobiliza a melancolia. De tal modo que, “se toda uma avalanche se despencasse sobre ele”, nem assim “ele acharia necessário sacudir a neve”. Uma égua junto ao cocheiro está “mergulhada em meditações”. Homem e animal flagrados na mesma situação — imóveis, com os corpos cobertos de neve. A ação principal do conto se passa durante a noite, nas sombras de São Petersburgo: “…eis que a sombra da noite desce sobre a cidade”. O ambiente, portanto, refletindo a dimensão soturna do personagem. De tão próximos, os movimentos do cocheiro correspondem aos movimentos da égua: “o cocheiro estala os lábios, estica o pescoço; […] a eguazinha também estica o pescoço”. Com a chegada de um militar querendo ir a Viborgskaia, manifesta-se o atabalhoamento do cocheiro, que inicialmente quase se desvia do trajeto. Ao militar falastrão, e após alguns solavancos, Iona Potápov, numa fala reticente, que primeiro dá giros, diz: “— É que… patrão… coisa… o… meu filho… e finou esta sema[1]na”. O militar quer saber como foi a morte do filho de Iona. O cocheiro informa: “— E quem sabe lá! Vai ver, foi a febre… Ficou três dias no hospital e se finou… É a vontade de Deus”. Mas o militar não tem interesse na história do outro, “não está disposto a escutar”. Depois de ficar em Viborgskaia, o cocheiro e o animal voltam a ficar paralisados na neve: “De novo, a neve úmida tinge de branco a ele e à sua égua”. Então chega um grupo de três jovens alegres e beberrões — dois “compridos” e um “baixo e corcunda”. Iona os transporta. Durante o percurso, o corcunda goza do gorro do cocheiro, reclama da indisposição da égua: “Chicote nela!”. Acha a viagem desconfortável, irritando-se constante[1]mente: “Deus meu, palavra que não agüento mais viajar assim! Quando é que nós vamos chegar?”. Após alguns minutos e impropérios, mais uma vez o cocheiro tenta contar da morte recente do filho. O jovem corcunda apenas lhe diz, depois de um acesso de tosse: “— Todos vamos nos finar…”. Iona, entretanto, insiste, querendo dar detalhes de como o filho faleceu — “mas aí o corcunda suspira aliviado e declara que, graças a Deus, eles já chegaram”. Novamente o cocheiro com sua égua, agora angustiado por, na cidade, não ter ninguém para ouvi-lo: “Os olhos de Iona correm aflitos e martirizados pelas turbas que se agitam de ambos os lados da rua: não haverá no meio desses milhares de pessoas ao menos uma que quisesse ouvilo? Mas as turbas correm sem notá-lo, nem a ele, nem à sua angústia”. O narrador anota ainda: “Dirigir-se aos homens, ele [Iona] já considera inútil”. É dramática a cena em que Iona, no dormitório, em vigília, tenta falar de seu filho para um cocheiro moço que acordara para beber água. O rapaz, entretanto, indiferente, cobre-se para dormir. Internalizando o foco, o narrador faz aqui um registro pungente da dor do personagem: “Logo vai fazer uma semana que o filho morreu, e ele ainda não conversou direito com ninguém… É preciso conversar com vagar, com calma… É preciso contar como o filho ficou doente, como sofreu, o que disse antes de morrer, como morreu. É preciso descrever o enterro e a viagem ao hospital para buscar a roupa do defunto”. A essa altura do conto já verificamos que apenas a égua dá mesmo sinais de compreender o cocheiro: “E a eguazinha, como que lhe adivinhando o pensamento, põe-se a correr a trote miúdo”. E é para ela, afinal, que Iona termina confiando o seu drama. A mesma estratégia que vinha adotando para conversar com os homens, ou seja, de usar uma frase ou comentário introdutório e aparentemente despretensioso para poder falar do filho, Iona adota com a égua: “— Mastigas? […] Mastiga, anda, mastiga… Se não ganhamos para a aveia, comeremos palha… Pois é… Já estou velho para este trabalho… O filho é que devia trabalhar, e não eu… […] Assim é, mana eguazinha… Não temos mais Kusma Ionitch… Foi-se desta para melhor… Pegou e morreu, à toa…”. Só no animal o cocheiro tem apoio, só ele lhe dá ouvidos: “A eguazinha mastiga, escuta e es[1]quenta com seu bafo as mãos do dono… Iona se deixa arrebatar e conta-lhe tudo…”. É signifi[1]cativo esse detalhe do bafo, calor reconfortante que vem das entranhas como se uma manifesta[1]ção da alma do animal. Tchekhov parece abrir todo um caminho na narrativa moderna em que, numa situação-limite de solidão, na cidade ou no campo, homem e animal se acolhem, nivelando[1]se. Na literatura brasileira (por exemplo, no capí[1]tulo 3 de O quinze, de Rachel de Queiroz, quan[1]do o vaqueiro Chico Bento, por causa da seca, solta o gado do curral para este morrer à mín[1]gua), há momentos em que o animal sente como o homem e o homem age como animal

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho