A terceira vertente do livro O olhar tardio de Maria, do cearense Carlos Gildemar Pontes, é a das narrativas fantásticas, na melhor tradição do realismo fantástico hispano-americano: Perfil de um homem comum, tratando de um indivíduo que, involuntariamente, engoliu uma aranha (esta encontra no estômago dele cupins que estão lhe transportando os neurônios), alegoriza a alienação; O espelho traz uma protagonista que, num isolamento narcísico, iludida por um espelho, perde a noção do tempo; O homem que botava ovo, humorado, é quase uma anedota sobre um indivíduo que nas noites põe ovo e que se enovela na existência, se intrigando com a namorada e acabando num hospital, onde lhe cortam a barriga — e desta, bizarro parto, salta uma galinha. Destaco da quarta vertente do livro, a das obras metaficcionais ou de inspiração pós-moderna, três contos: Em nome do pai, sobre um filho que, na infância, sofre maus-tratos do pai e, já adulto, dele se vinga, integrou a coletânea Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte (organizada por mim em 2008), e é uma reescritura do relato machadiano Pai contra mãe; Minha gente, narrado do ponto de vista de um cavalo, é recriação do conto homônimo de Guimarães Rosa e foi incluído na coletânea Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (que organizei em 2006); A missionária, que se passa em Paris, opera um intertexto com Juliette, a protagonista amoral e assassina do romance do Marquês de Sade. Por último, da quinta vertente de O olhar tardio de Maria, a do conto como um quase documento folclórico, aponto as narrativas que incorporam o humor e mesmo o anedotário cearense (o contista é de Fortaleza): O homem que comprou a felicidade, ambientado na capital cearense e com um protagonista que, empregado pobre de um escritório, decide fazer um pacto com o Diabo para ficar rico, tem dois narradores: o primeiro faz o relato do núcleo central da história e o segundo, como um ridículo inspetor, intervém e procura fazer correções na narrativa do primeiro; Papagai n’areia quente é sobre um homem que constrói casas (é proprietário de uma vila) com o dinheiro que arrecada, travestido de mendigo, nas ruas de Fortaleza, especialmente no bairro pobre do Pirambu; conto que retrata a avareza com humor (o “Papagai n’areia quente” do título é o apelido, gritado pela garotada nas ruas, do falso mendigo, que também toma pedradas). Carlos Gildemar Pontes é um contista consistente, de escrita poética, cujas narrativas se inserem nas vertentes centrais do conto contemporâneo. Pelas situações que aborda e pelas formas que adota, é, plenamente, um contista do nosso tempo.