Um anão está preso na mala (2)

A força da oralidade de Rubem Fonseca
Rubem Fonseca, autor do clássico “Feliz ano novo”
01/08/2018

O narrador do conto O anão, de Rubem Fonseca, é o bancário desempregado que é atropelado por Paula. Além de narrar os fatos, além de construir a imagem das figuras com as quais se depara (Sabrina, Paula e o anão), ele constrói também uma forte imagem de si mesmo. Ele destaca a sua virilidade, o seu furor sexual ao manter relações com Sabrina e Paula. Parece que ele narra sobretudo para se afirmar, para dizer-se dominador, para confessar-se viril. Viril e ainda agressivo com os que o traem (caso do anão). Ao fazer uma ligação do seu desejo sexual com as notas de dinheiro que conferia quando era funcionário do banco, está assegurando a sua força, o seu domínio sobre figuras que ele imagina serem inferiores — no caso, as duas mulheres (Sabrina e Paula) e o anão. O narrador, grosseiro, tem gosto pelo obsceno, pelo termo chulo. Tudo nesse conto é funcional. Nele, os espaços aludidos ajudam a compor a imagem do bancário como alguém sem posses e desempregado. O bancário, quando atropelado, vai para o hospital público Miguel Couto e lá fica exposto “numa maca, no corredor”, pois o “hospital estava cheio”. É também significativo o fato de ele morar num sobrado no Catumbi (bairro decadente do Rio de Janeiro), sobrado cujas escadas dificultam seu acesso quando do retorno do hospital. O espaço é, repita-se, funcional para compor a imagem dos personagens. Outro exemplo: o anão “fuça” o lixo de uma lanchonete — índice forte de sua miséria. Também o tempo tem muito valor nessa narrativa. O conto se passa entre o atropelamento do bancário desempregado e a morte do anão. Entre esses dois fatos, há uma série de situações intermediárias, de incidentes, como as relações do bancário com Sabrina, a morte desta; a relação sexual dele com Paula, o afastamento desta por causa da gravidez; a extorsão de Paula tentada pelo anão. Nota-se que, por se conter em poucas situações, o conto não acumula tantas situações intermediárias (como seria, evidentemente, o caso de um romance). São poucas as situações — mas todas são peças exatas, todas funcionam bem para compor a imagem viril e agressiva do personagem-narrador, que se mostra, como já indicado, como alguém que tem um desempenho sexual fora do comum, dominando e/ou se exercendo sobre as duas mulheres e, em especial, sobre o anão. Quanto à linguagem, outro elemento poderoso em Rubem Fonseca, mais uma vez temos a força da oralidade, do discurso direto espontâneo, que adere ao universo dos personagens. Vale ainda destacar o emprego do discurso direto desconvencionalizado, traço hoje comum na nossa ficção. Ou seja, o discurso do narrador se mescla o tempo todo no conto com o discurso dos personagens, não havendo separação das duas instâncias discursivas. Assim, o discurso dos personagens não vem antecedido de dois pontos e também não é iniciado por travessão. Exemplos (os trechos em negrito correspondem ao discurso do narrador; os sublinhados, ao do personagem): “Ela deu um suspiro de alívio e disse, muito obrigada”; “Ela insistiu e eu fui duro, não precisa, e ela ficou chateada”; “Quando a mulher apareceu, Sabrina perguntou, a senhora veio a mando do hospital?”.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho