Solidariedade em O quinze

Um elemento fundamental de nossa “literatura sertaneja” (para usar um termo de Vania Pinheiro Chaves, em seu bom ensaio sobre o romance Essa terra, de Antônio Torres) é, certamente, a mística cristã
01/09/2005

Um elemento fundamental de nossa “literatura sertaneja” (para usar um termo de Vania Pinheiro Chaves, em seu bom ensaio sobre o romance Essa terra, de Antônio Torres) é, certamente, a mística cristã. Em O quinze, de Rachel de Queiroz, há duas cenas de solidariedade fortemente impregnadas dessa mística. A primeira: Chico Bento, retirando-se com a família rumo a Fortaleza, deixando, desolado, por causa da seca, a fazenda onde era vaqueiro no município de Quixadá, encontra embaixo de um juazeiro um grupo de retirantes esfolando uma novilha, a carne já meio apodrecida, que morrera de mal-dos-chifres. Chico Bento, vendo aquilo (os urubus no céu já fazendo a ronda), se revolta, ou se “ripuna”, e, “num gesto de fraternidade”, manda os outros atirarem fora o animal: “Eu vou lá deixar um cristão comer bicho podre de mal”. Chico Bento retira dos alforjes um resto de carne de bode seca e oferece ao grupo. Cordulina, a mulher do vaqueiro, se preocupa: “Chico, que é que se come amanhã?”. Chico Bento aí arremata (a cena e o capítulo 7 do livro): “Deus ajuda”. Portanto, a base cristã do vaqueiro é que o empurra para o ato solidário. Ele dá o alimento, mas entendendo que Deus está vendo a sua ação. Moral dessa história para Chico Bento? É dando que se recebe. Outra cena de solidariedade no romance é aquela em que Dona Inácia, retornando de Fortaleza para Quixadá após a retomada das chuvas, encontra na estação de Baturité a afilhada Mocinha (capítulo 25). Mocinha — “um dos eternos fantasmas da seca” — partira junto com o cunhado Chico Bento mas se “perdeu”, passando a viver de “mão em mão”. Dona Inácia vê a decadência da outra, ali com uma criança de colo, pedindo esmola na estação, e se assusta: “Você! Mas Mocinha, o que foi isso?”. Ora, a madrinha, na tradição católica, serve para dar bom exemplo e proteção. Daí Dona Inácia dizer: “…eu lhe ajudo no que puder para você endireitar sua vida…”. E concluir: “Tenho tanta pena de ver uma afilhada minha feita mulher da vida”. É muito rica na cena a forma como Mocinha aborda Dona Inácia: ela dramatiza ainda mais a sua situação de penúria utilizando-se da linguagem verbal e da corporal, misturando ofensas com atitudes de tristeza/comiseração, para arrancar da madrinha alguns tostões. Estratégia, enfim, que todo pedinte costuma utilizar: palavra e corpo a serviço da comoção. Sem comoção, sabemos, não há doação, não há filantropia/assistencialismo social. Dona Inácia, “comovida demais”, cede: passa para a afilhada uma nota de cinco mil-réis e ainda um sanduíche que carrega no colo. Mocinha agradece: beija primeiro o dinheiro e, depois, a mão da madrinha. Mundo de relações demoníacas, do dinheiro colocado acima de todos os outros valores (o ato da personagem de primeiro beijar a cédula remete àquela fala de Paulo Honório em São Bernardo: “Dinheiro é dinheiro”). Na cena, a mística cristã está na base do ato de solidariedade de Dona Inácia. Ela tem culpa, remorso — por isso passa o dinheiro para a outra, compensando-se interiormente, acertando-se com o Divino.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho