Saramago contra Bush (ou o escritor e a guerra)

Todo escritor lança um olhar sobre uma espécie de guerra básica do homem a do indivíduo inadaptado a uma condição que lhe foi imposta pelos outros, pela sociedade
01/12/2007

Todo escritor lança um olhar sobre uma espécie de guerra básica do homem — a do indivíduo inadaptado a uma condição que lhe foi imposta pelos outros, pela sociedade. Se, porém, pensarmos em guerra no sentido habitual do termo, no confronto entre nações que resulta quase sempre em destruição, ruínas — aí o escritor, se deseja retratar o assunto com alguma propriedade, parece não ter saída senão testemunhar tentando apresentar os motivos que levaram os indivíduos à violência. E é justamente nisso que o escritor poderá dar uma contribuição — apontando, de alguma forma, as causas para proporcionar ao leitor uma reflexão sobre os comportamentos violentos. É da ordem do senso comum: no decorrer da história houve dois movimentos básicos dos homens — um para a violência e outro para a paz. Assim que surge a vontade ou o impulso de alguns para a violência, já aparecem aqueles que aspiram à paz. Penso que a literatura, e a arte de um modo geral, poderá dar a sua contribuição ficando (ou criando metáforas) a favor da paz. Quem, por exemplo, há alguns anos, em momento tão delicado, se posicionou firme e politicamente a favor da paz foi José Saramago. Suas declarações sobre a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque foram fortes e revelaram, entre outras coisas, uma acentuada preocupação com o poder, cada vez mais abrangente, dos americanos. Avaliou o escritor português (Folha de S. Paulo — 24/02/2003): “O Iraque, diga o que diga o sr. Bush, não representa neste momento um perigo para a segurança mundial, e isto não quer dizer que eu considere Saddam Hussein um cordeirinho inocente”. Sobre os países que se submetem aos interesses dos Estados Unidos, afirmou Saramago: “São muitos os países onde os norte-americanos têm bases militares, mas não me consta que qualquer desses países tenha bases nos Estados Unidos… As bases na Europa tiveram como razão de ser o que se denominou ‘perigo soviético’. Esse perigo desapareceu, e as bases continuam onde estavam. E não vale a pena lançar poeira aos olhos: o único país a quem a guerra hoje realmente interessa é os Estados Unidos. O seu projeto imperial e neocolonial precisa dela para se consolidar”. A respeito da democracia: “Como é que se pode falar de democracia quando o poder real não é político, mas econômico? Como se pode falar de democracia, quando o poder real não é político, mas militar? Quanto a Chirac [ao se posicionar contra a guerra antes de uma inspeção mais minuciosa da ONU no Iraque], o que ele fez foi recordar-se de De Gaulle, pensar que a França deverá ser a cabeça política da Europa. É uma jogada arriscada. Veremos se os Estados Unidos estão dispostos a admitir veleidades ‘independentistas’ por parte de Europa…”. Disse, finalmente, sobre o terrorismo, o autor de O evangelho segundo Jesus Cristo: “Que o terrorismo continuará? É mais do que certo. Que a Europa poderá vir a ser vítima de ações terroristas? É muito provável. A chamada civilização ocidental semeou ventos, agora colhe tempestades. É absolutamente legítimo, de qualquer ângulo que se examine a situação, lutar contra o terrorismo, mas eu aconselharia a que se estudassem as raízes profundas deste terrorismo e as responsabilidades históricas do próprio Ocidente na sua formação e eclosão. Dizer ‘Nós somos inocentes do mal que eles sofreram e sofrem, estávamos tranqüilos na nossa casa e vieram atacar-nos’ é uma pura hipocrisia. Se amanhã os índios da Amazônia descerem em pé de guerra contra São Paulo (permita-se-me esta hipótese fantástica), não se lembrem os paulistas de dizer que estavam inocentes, que não tinham a culpa. […] Bin Laden é inimigo da civilização ocidental, mas o inimigo maior da civilização ocidental é ela própria. Geramos o monstro que nos devorará. Esse monstro chama-se soberba, insolência, egoísmo feroz. Aqueles a quem espezinhamos cansaram-se de ser espezinhados…”. Parecem certeiras as palavras de Saramago.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho