Os tempos do amor, segundo Chico Buarque

Sem sentimentalismo, antes com uma apurada compreensão filosófica, Chico Buarque, na canção Todo o sentimento, descreve os tempos da relação amorosa
Chico Buarque, autor de “Anos de Chumbo e outros contos”
01/06/2009

Sem sentimentalismo, antes com uma apurada compreensão filosófica, Chico Buarque, na canção Todo o sentimento, descreve os tempos da relação amorosa. Vejamos, estrofe por estrofe, que tempos são esses. Primeira estrofe (primeiro tempo: o da INTEIREZA): “Preciso não dormir/ Até se consumar/ O tempo/ Da gente/ Preciso conduzir/ Um tempo de te amar/ Te amando devagar/ E urgentemente”. Trata-se do tempo de toda a atenção — do zelo, do cuidado. Tempo da plenitude do ato de amar. E que deve se cumprir com calma (“devagar”), e, de tão decisivo para a felicidade, sem adiamentos (“urgentemente”). Segunda estrofe (segundo tempo: o da DEFESA): “Pretendo descobrir/ No último momento/ Um tempo que refaz o que desfez/ Que recolhe todo o sentimento/ E bota no corpo uma outra vez”. Na relação amorosa, nem tudo é inteireza, intensidade. O amor sofre ameaças, revezes. A chave desta estrofe está no verso “No último momento”, que atesta a idéia de uma crise que está encaminhando a relação para um fim, para um desfecho. Assim, esfrangalhada, e correndo o risco de esfrangalhar-se de vez, a relação remenda-se — “refaz”se em seus trapos. Há uma nova aposta no amor. O amor é defendido (o sentimento é posto “no corpo uma outra vez”). Terceira estrofe (terceiro tempo: o da CERTEZA): “Prometo te querer/ Até o amor cair/ Doente/ Doente/ Prefiro então partir/ A tempo de poder/ A gente se desvencilhar da gente”. Aquilo que, no “último momento”, foi suspenso ou evitado — o fim ou o desfecho da relação, por conta de uma nova investida no amor, ou da defesa deste — agora é fato. Chega, inevitável, imperioso, o instante da separação. Nada mais impede o “desvencilhar”-se — que é o mesmo que soltar-se, desprender-se. Trata-se de um rompimento, de uma retirada que decorre de uma convicção — a de que o amor debilitou-se, esgotou-se. Tempo da certeza. Quarta estrofe (quarto tempo: o da DELICADEZA): “Depois de te perder/ Te encontro, com certeza/ Talvez num tempo da delicadeza/ Onde não diremos nada/ Nada aconteceu/ Apenas seguirei, como encantado/ Ao lado teu”. Por fim, passa-se do tempo da certeza para o da “delicadeza”. O que dizer deste quarto tempo da relação amorosa? É o do amor que virou amizade? Pode ser. Pode também ser o seguinte: o amor, que, no primeiro momento, foi zelo, cuidado; que depois se degenerou a ponto de quase se perder; que, afinal, sucumbiu, partindo em retirada — o amor, de algum modo, fixou-se nos (ex)amantes, deixou marcas. Como resquício, restará em suas memórias. Enquanto resquício, o (ex)amor, e quando menos se espera, repassa na memória, ressurge. E isto que nos persegue — a memória de um amor passado — parece mesmo um tanto delicado. E chega como um ente invisível, encantado.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho