Talvez esteja fora de moda, ou mesmo nunca tenha tido muito êxito entre nós, o conto macabro. As fórmulas parecem batidas, pouco férteis. Mas, na mão de um bom escritor, podem render. Embora contendo pouca coisa de novo, de inventivo, o longo conto O vôo da madrugada (o livro com este título obteve o Prêmio Jabuti/2004), de Sérgio Sant’Anna, é bom, tem fôlego, poesia, tensão, densidade. E também, ao final, um desfecho surpreendente, isto após prender o tempo todo a atenção do leitor, como cabe ao bom conto, revelando um autor com pleno domínio da técnica. São muito bem tecidos os planos do real e do insólito, uma vez que se trata de uma narrativa fantástica (isto se dermos crédito à informação final de que o protagonista, também narrador da história, já de volta para o seu apartamento em São Paulo, é na verdade um “deles”, ou seja, um dos mortos no acidente aéreo em Roraima). Mais uma narrativa póstuma, nas pegadas do Machado de Brás Cubas (em Sant’Anna, no entanto, o roteiro é bem diverso, já que seu conto não deixa de ter como objetivo final — e estou pensando na revelação do desfecho — atemorizar o leitor; além disso, há um apego decisivo às soluções de sempre do gênero suspense e mistério). No conto, chama primeiro a atenção o aborrecimento, a natureza entediada, do protagonista. O enfado, provocado pelos permanentes deslocamentos, pelas viagens a serviço da empresa onde trabalha, é inicialmente a sua principal marca. Um tipo, “de vida errante e burocrática”, que detesta o seu cotidiano “árido” na cidade de São Paulo. Mas, estando em Boa Vista e antecipando a passagem para pegar um vôo extra para São Paulo no qual estarão os parentes e os corpos das vítimas de um desastre aéreo (repito que, só ao final do conto, ficamos sabendo que o protagonista-narrador é uma das vítimas do acidente), não poupa palavras aborrecidas e, mesmo, preconceituosas, contra o lugar: o hotel Viajante, onde fica hospedado, tem um “velho e empoeirado condicionador de ar”; perto do hotel, um bordel miserável (como tantos, em toda parte do país) lhe chama a atenção por ostentar o “nome ridículo de Dancing Nights”; o bordel e um beco próximo, onde avista uma adolescente ainda “impúbere”, e a quem deseja, mobilizam a sua “parte nefasta”; Boa Vista é apontada como uma “cidade perdida nos confins mais atrasados”; seu aeroporto, cuja estrada é “esburacada”, não passa “de um grande galpão e uma pista de pouso”. O protagonista de Sant’Anna repele as imagens do país real e pobre. E por quê? É que a visão de mundo do personagem remete à de um tipo metropolitano, da classe média, buscando em tudo o conforto, e que pensa que o Brasil é apenas aquele dos grandes centros. Um tipo que, com a cabeça no Primeiro Mundo, tenta desconhecer ou ser indiferente às mazelas do Terceiro. Tenta desconhecer ou ser indiferente ao Brasil amazônico, sertanejo; enfim, ao Brasil atrasado. A alienação do protagonista de Sérgio Sant’Anna, a sua perspectiva, até certo ponto, de estrangeiro na própria terra, soa deslocada mas é muito atual, e lhe dá densidade, consistência. O encontro do protagonista com a moça (encontro de dois mortos, já que ela está também “entre eles”, entre os mortos no acidente), na penumbra da madrugada, durante o vôo, é descrito com leveza e poesia: “Abri dois botões do seu vestido e tocava de leve os seus seios, encobertos pelos seus cabelos longos, negros e lisos que ela deixou cair para a frente — como para nos ocultar […]”. A história de O vôo da madrugada, em si, como indiquei, parece trazer mesmo pouca novidade (para um autor inquieto, com uma trajetória um tanto experimental). Mas a linguagem de Sérgio Sant’Anna, madura, saborosa de ler, rítmica, o coloca entre os bons autores que despontaram há algumas décadas e que prosseguem produzindo literatura muito competente.