O poder no conto Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa

O que falta de poder ao caçador na sociedade dos homens, ele tem de sobra na comunidade das onças
Guimarães Rosa, autor do conto “Meu tio o Iauaretê”
01/07/2021

O conto Meu tio o Iauaretê é um resumo formidável da literatura de Guimarães Rosa. O conto concentra duas características de Rosa às quais Walnice Nogueira Galvão, comentando a obra geral do escritor mineiro, chamou a atenção: o apuro formal (com os experimentalismos) e o poder de fabulação. O conto traz um narrador-personagem inculto, intuitivo, instintivo — um caçador de onças que vive num rancho enfiado nas matas. Este caçador é um profundo conhecedor dos costumes, do modo de caçar e/ou de ser das onças. Mergulha de tal modo na existência dos animais que termina se identificando com eles — se diz um “parente” das onças e quer andar e/ou ser como estas. Fabulador extraordinário, o personagem-narrador puxa narrativa atrás de narrativa sobre fatos e gentes da região onde vive — isto para matar a curiosidade de seu interlocutor (um indivíduo que chegou para pernoitar em seu rancho) e aproveitar para tomar a cachaça que este lhe oferece. O fato é que o caçador de onças se identifica tanto com elas que termina perdendo empatia pelas pessoas — e aqui reside uma metáfora forte do conto. Subtrair parte significativa dos afetos e da empatia pelo outro torna o personagem arredio ou mesmo estranho ao humano. Optar por ser onça, encarnar a existência dela é renunciar em grande medida à condição humana. Ocorre que, pela leitura do personagem, onça é um animal perigoso e traiçoeiro — como os homens. A ferocidade da onça equivale à ferocidade humana. Com uma diferença fundamental: o caçador obteve conhecimentos suficientes para dominá-las, subjugá-las e até, de certo modo, domesticá-las (caso da onça Maria-Maria). Sendo vorazes e espertas, as onças, mas estando sob o domínio do caçador, este se sente forte, poderoso. É o poder que falta ao narrador-personagem na sociedade, homem muito pobre e rude que é. Por isso é que o caçador, com seu poder quase encantatório sobre as onças, as faz devorar alguns indivíduos, gente de quem ele não gosta. O que falta de poder ao caçador na sociedade dos homens, ele tem de sobra na comunidade das onças. Ser, ou melhor, dominar onças contra humanos é o único poder que lhe resta naquelas paragens profundas. Em ambientes primitivos, adversos ao extremo, o poder (e sua violência) nasce sobretudo como autodefesa, servindo à sobrevivência. É disso que Meu tio o Iauaretê parece tratar.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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