O peru de Natal, de Mário de Andrade

Os laços familiares são vistos como estreitos e frouxos, ou assimétricos — com harmonias e dissonâncias
Mário de Andrade, autor do conto “O peru de Natal”
19/09/2020

O conto O peru de Natal trata de um rito familiar. Narrado em primeira pessoa, repassa as impressões de um filho no primeiro Natal após a morte do pai. A figura do pai aparece ambígua no conto. Do ponto de vista do narrador, o pai é uma memória a ser cultivada? Ou deve ser posta de lado? Há silêncios, não ditos, na voz narrativa. O que dá a entender ter sido o pai um tipo comedido, até avarento, ou mesmo opressor, dominador. A mãe do narrador, por sua vez, é benevolente, agregadora, impõe-se pelo carisma junto ao próprio narrador. Este é às vezes rebelde, desafeito às regras, aos ritos familiares (tanto que é tido por alguns como “um doido”). Mas é também integrado, protegido e protetor da figura materna. Quanto à simbologia: consagrado ao rito do Natal e a outros ritos e festas familiares, onde sempre é o prato principal, o peru é no conto emblema de confraternização e ainda de tensão. Especialmente quando entre em disputa, na hora da ceia, com a lembrança — para o narrador um tanto tensa, inapropriada — da figura paterna. Pai e peru, conforme o narrador, são “dois mortos” — e vence o animal, que será devorado no momento da ceia, enquanto o pai vai sendo preterido, até sair de cena, até ser esquecido no desfecho da comilança. O narrador ajuda a abafar essa memória desconfortável do pai e até saboreia, junto com os nacos de peru, essa deslembrança momentânea do genitor. E buscará, ao final, o prazer de dividir um champanhe com a namorada. Os laços familiares, assim, são vistos por Mário de Andrade como estreitos e frouxos, ou assimétricos — com harmonias e dissonâncias.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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