O ônibus de Cortázar

Um dos contos mais intensos e inquietantes do século 20 é Ônibus, que consta do famoso Bestiário, de Julio Cortázar
Julio Cortázar, autor do clássico “O jogo da amarelinha”
01/07/2006

Um dos contos mais intensos e inquietantes do século 20 é Ônibus, que consta do famoso Bestiário, de Julio Cortázar. De técnica apurada, acelera o leitor à proporção que a marcha do ônibus aumenta. Clara, uma das protagonistas do conto, pega numa esquina o ônibus 168, que ronda por bairros de Buenos Aires, e se depara com uma estranha gente que passa a observá-la insistentemente assim que adentra o veículo. Os olhares mais duros, e estranhamente ameaçadores, vêm do motorista e do cobrador. À frente, sobe um outro passageiro, um homem, que, como Clara, sofrerá o mesmo peso dos olhares insistentes. Eis o insólito, o fantástico, infiltrando-se no real. Mas infiltrando-se de forma sutil, como o perfume dos ramos que os demais passageiros — que seguem para o cemitério de Chacarita — carregam. Entrando pela janela como os charcos (e muito provavelmente seus odores), que se estendem nos fundos dos terrenos baldios, e que Clara, tentando descontração, observa. Clara e o homem, de uma hora para outra, inseguros, instáveis. Numa palavra, desamparados. Mas nada é mais importante do que a intensidade com que isso é narrado. O motorista, em certo momento, após os outros passageiros descerem diante do cemitério, ficando no ônibus somente Clara e o homem, torna-se ainda mais ameaçador. Vem vez por outra (em determinadas situações em que o veículo pára) vai para cima dos dois, agora sentados juntos, tentando enfrentá-los como um desmiolado. Daí a única saída, para Clara e o outro, ser buscar uma maneira de descer desse ônibus, que no entanto descamba por ruas numa velocidade aterrorizante. O que quer esse motorista tão intimidador? Por que enfrentar dois passageiros que, de tão amedrontados, amparam-se, segurando-se nas mãos? O conto não apresenta as respostas, deixa-as implícitas. Clara e o homem, num lance intempestivo, escapolem do veículo quando este pára diante de uma praça. E saem andando, ainda angustiados, pela praça cheia de crianças e sorveteiros. O homem compra de um vendedor dois ramos de flores. As mesmas flores que eles não dispunham no interior do veículo e que os fizeram se sentir deslocados diante daqueles que as levavam ao cemitério. Em literatura, penso que poucos personagens pegarão um ônibus tão assustador como esse do autor argentino. Talvez o motorista seja uma alegoria da morte, que a todos conduz para o desconhecido. Talvez o ônibus seja a nave que a todos transporta para as portas do céu ou do inferno (tal a barca de Caronte). E tudo muito perfumado pelas flores dos que a todos acompanham à campa. Parece ser da morte e da angústia que ela nos provoca que o conto trata.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho