Eu, através de meus contos e romances, já fui muitas “pessoas”. Já fui um cafajeste que tentou enforcar uma mulher (no conto Confidências de um amante quase idiota), já fui um tipo pervertido que deseja a própria filha (no conto O perfume de Roberta), já fui, por assim dizer, uma psicopata (no romance Rita no pomar — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura/2009), já fui um furioso mendigo assassino (no conto Ilhado), já fui, ao mesmo tempo, duas mulheres traídas (no conto Duas margens), já fui um músico e professor vítima de traições dolorosíssimas (no romance Romeu na estrada), já fui uma solitária professora aposentada (no conto O mar é bem ali), já fui um indivíduo desamado e contagiado por um vírus (no conto Dois buracos para os meus olhos), já fui um imbecilizado que anda pela cidade montado numa égua (no conto Beleza — Prêmio Paraná de Literatura/2006), já fui uma mãe que teve o filho morto por um policial (no conto O último segredo), já tentei matar a noiva depois de irmos ao shopping (no conto Pássaros), já fui uma jovem que se apaixonou por outra (no conto A tragédia prima de Silvia Andrade), já fui um sem-teto que invadiu uma mansão e passou a ser perseguido pelo proprietário da mesma, que também morava no imóvel (no conto O caçador), já fiz sexo numa praia, alta noite, com uma velha bem velha (no miniconto A velha madame), já me encantei por uma bela e pobre ninfeta numa rodoviária, quando ela ia pegar o ônibus para migrar para São Paulo (no conto Borboleta), já fui um poeta que mata friamente uma mulher que lhe diz um “não” (no conto Você não quis um poeta), já fui uma estuprada numa rua sombria (no conto A rua que respira pouco), enfim, já gritei por dentro a dor de uma separação (no conto O último café). Foram vidas que vivi em minhas ficções. Personalidades que assumi. Porque o ficcionista, como o ator, vive papéis. E a ficção, essa representação de tipos humanos — de qualquer tipo humano, reafirmo —, independe de gênero ou de ser feita por escritor ou por escritora. A grande busca do ficcionista é, no fim, a natureza humana. Busco, com as minhas personagens femininas e com as masculinas, investigar, com a maior abrangência possível, a natureza humana: aquilo que habita nas profundezas da nossa alma. No que diz respeito mais especificamente às personagens femininas, procuro também, através delas, pensar a condição da mulher na sociedade atual. Tento fazer com que o leitor medite acerca da figura feminina que está na trama. Algumas de minhas figuras femininas são muito fortes, como a vingativa e violenta Rita, protagonista do romance citado Rita no pomar; outras são resistentes e não decaem com a solidão, como a professora aposentada do conto O mar é bem ali; há as enciumadas e de uma perversidade calculada, como uma das protagonistas do conto Duas margens; e há aquelas que se tornam vítimas das desigualdades sociais, partindo para a prostituição, como as adolescentes dos contos Oferta e O perfume de Roberta (mesmo prostituídas, são personagens relutantes, que esboçam uma força). Creio que há poucas mulheres frágeis em minha ficção, vítimas desoladas dos homens. Mas, repito, para concluir: antes da configuração social, dos papéis que as mulheres cumprem na sociedade, me interessa mais dimensionar a natureza humana através de minhas personagens, tanto as femininas quanto as masculinas. E a natureza humana, obviamente, não tem gênero.