O ficcionista, intérprete da natureza humana (2)

O ficcionista se faz, verdadeiramente, por saber compor o personagem que é a representação de um tipo histórico-social qualquer
01/08/2025

Há uma voz narrativa sensível, lírica, no conto A autoestrada do sul, como em tantos outros de Cortázar, que me faz sempre voltar a ele, me envolver com o ambiente da estrada, com a atmosfera poética daquela borboleta branca que passa, voa para o distante, some no crepúsculo, enquanto os automóveis estão paralisados, imobilizados pelo incrível congestionamento que dura semanas e semanas. Cabe ao próprio narrador traduzir a sensação dos motoristas que vivem a experiência do imenso engarrafamento, que se inicia num domingo à tarde, à entrada de Paris: “a sensação contraditória de enclausuramento em plena selva de máquinas concebidas para correr”. Essa não é uma sensação muito atual, de quem diariamente vive as situações de imobilidade urbana? Sim. Enfim, para Cortázar, o automóvel, flagrado no conto na “absurda” situação de um congestionamento interminável, para além do bem ou do conforto (individual, sobretudo) que ele propicia, termina se tornando um equipamento dramático e mesmo trágico da vida moderna. Então, voltando a Valter Hugo Mãe, se o romance ou a literatura, para quem escreve (e também para quem lê, repito), é um ato de “meditar”, meditemos. Meditemos sobre o tema desta mesa [da qual participei como ficcionista no Curso de Letras da Universidade Federal de Campina Grande/PB]: A construção da personagem feminina na literatura contemporânea. Estamos, eu e o meu colega de mesa, submetidos às questões: um escritor elabora do mesmo modo que uma escritora a personagem feminina? Há literatura de homem e de mulher? Ou há apenas literatura? Retomo Valter Hugo Mãe, que afirma, enquanto criador de personagens: “Estou sempre fascinado com a oportunidade de imaginar a vida de outras pessoas. Isso retira-me também da minha vida. […] Gosto de pensar em ser outro”. “Ser outro”, apropriar-se “da vida de outra pessoa” — eis o ponto principal para o ficcionista. A tarefa de quem escreve ficção, portanto, é construir com talento, com poder de persuasão, “a vida de outra pessoa”, ou de “outras pessoas”. Isso é o mesmo que mimese para Aristóteles. Ou seja, a imitação ou a representação que a literatura faz da vida. O verbo “representar” cabe bem no caso — eu vivo ou “represento”, pela escrita ficcional, pessoas. Os personagens partem de ou evocam pessoas. E a pessoa que vai servir de base, que vai virar personagem pela mão do ficcionista pode ser qualquer uma. Independe de gênero, de classe social, de etnia, etc. O ficcionista se faz, verdadeiramente, por saber compor o personagem, que, repiso, é a representação de um tipo histórico-social qualquer. Ora, se é assim, o problema não é ser homem ou mulher, ser escritor ou escritora, para elaborar ficcionalmente “a vida de uma pessoa”. É necessário, antes de tudo, ser ficcionista. Imaginar pessoas e situações e saber expô-las num enredo.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho