Machado de Assis e o sadismo (5)

Fortunato, ainda na CENA 6 do conto "A causa secreta", volta a dar vazão ao seu sadismo, zombando de Gouveia, rindo muito ao se lembrar dele
Machado de Assis, autor de “Dom Casmurro”
01/09/2010

Fortunato, ainda na CENA 6 do conto A causa secreta, volta a dar vazão ao seu sadismo, zombando de Gouveia, rindo muito ao se lembrar dele. E o riso — registra o narrador — “Não era o riso da dobrez [do fingimento]. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco”. Ou seja, um riso autêntico — expressão da alma. E aqui se desfaz o que se fez: a expressão feliz (e ambígua) de Maria Luísa ao saber, pela narrativa de Garcia, da boa atitude do marido. Porém, Garcia, ainda preocupado (e mais ardiloso) em agradar Maria Luísa, em recuperar a expressão feliz da mulher, volta a falar do episódio enquanto “dedicação”, enquanto um préstimo de Fortunato; fala das “raras qualidades de enfermeiro” de Fortunato: “…tão bom enfermeiro, concluiu ele [Garcia], que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo”. Daí é que a idéia de fundação da casa de saúde irá se “meter” na cabeça de Fortunato (um “capitalista” — o que supõe, no caso, um investidor —, como já informara, de passagem, o narrador no episódio envolvendo Gouveia). E o jovem médico resiste, recusa inicialmente, mas não consegue demover Fortunato da idéia de tê-lo como sócio. CENA 7: De início, registra o rápido monólogo de Garcia antes de decidir, finalmente, e após dias, ser sócio de Fortunato na casa de saúde. Garcia, no monólogo, conclui que a casa de saúde pode vir a ser “um bom negócio para ambos”. Portanto, intensifica-se o seu jogo de interesses materiais na relação com Fortunato. O jovem médico já não se atrai apenas por um caso de “decomposição de caráter”, de estudo da alma: há um “negócio” a ser gerido, a ser tocado pra frente. E há ainda Maria Luísa, que, ao saber da fundação da casa de saúde, fica entre aflita e aborrecida; receosa, reprova a idéia: “Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça”. Aqui, portanto, o reforço da imagem de mulher resignada, anulada diante do marido — e agora também “nervosa”. Se Maria Luísa “padece” com o fato de o marido ter contato com “enfermidades humanas” é porque, presume-se, pela proximidade, pela convivência, ela já desconfia ou mesmo já sabe quem ele é. Sabe de seu profundo sadismo. E se, diante de Fortunato, ela “curva e cabeça” sem esboçar qualquer reação, raiva, desgosto — é porque percebe que, se mostrar que “padece”, poderá alimentar ainda mais o sadismo dele, que, por um lado, se vale da dor física alheia e, por outro, da “dor moral”. Fundada a casa de saúde, Fortunato é abnegado, se aplicando ao trabalho, tornando-se “o próprio administrador e chefe de enfermeiros”. E ainda: “examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas”. Claro: tal aplicação às tarefas também é suspeita — pelo que até aqui foi mostrado pelo narrador acerca da natureza sádica de Fortunato, pelo próprio “padecimento” de Maria Luísa ao pensar na proximidade do marido com os enfermos.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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