Machado de Assis e o sadismo (3)

A CENA 4 do conto "A causa secreta", de Machado de Assis, funciona como um contraponto à cena anterior
Machado de Assis, autor de “Dom Casmurro”
01/07/2010

A CENA 4 do conto A causa secreta, de Machado de Assis, funciona como um contraponto à cena anterior. A figura ambígua, misteriosa e sádica de Fortunato volta a ser focalizada. Gouveia se dirige à casa de Fortunato para lhe agradecer. Mas a reação deste é absolutamente estranha, como se agora uma outra pessoa estivesse diante de Gouveia. Fortunato em nada se parece com o indivíduo dedicado, prestativo, que recolheu o outro ferido na rua e cuidou de tratá-lo. Fortunato reage à visita de Gouveia primeiro com aborrecimento, irritação: “…recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho”. Depois, quando Gouveia se apressa para sair da casa, reage com ironia, sarcasmo: “— Cuidado com os capoeiras! disse-lhe [Fortunato], rindo-se”. Gouveia, sem compreender o que se passa, e, pior, sem saber dar resposta, fica “mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém”. E põe para si um problema moral: como esquecer, explicar ou perdoar a atitude desdenhosa de Fortunato ao recebê-lo em casa? Esquecer — não pode, pois ficou profundamente ofendido. Explicar — não vê como, pois uma outra pessoa, com um outro desenho interior, é que o atende agora. Perdoar — não sente forças para tanto. Em síntese, o problema moral para Gouveia é: de Fortunato deve ficar o benefício (a sua boa ação) ou o ressentimento (decorrente de sua atitude desdenhosa)? O ressentimento acaba anulando o benefício na alma de Gouveia. Porque Gouveia, no fim, avalia o desdém de Fortunato como ingratidão (ao fato de ele, Gouveia, com a melhor das intenções, ter ido fazer uma visita de agradecimento ao outro). E, para o ressentido Gouveia, gratidão se paga com gratidão. CENA 5: Aborda, primeiro, Garcia e sua aptidão para ler a alma humana: “Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais […]”. Garcia, já formado (e sabedor do que se passara — ficou “assombrado” com o episódio — entre Gouveia e Fortunato na casa deste último), encontra Fortunato várias vezes — “e a freqüência trouxe a familiaridade”. De tal modo que, um dia, Fortunato, já casado com Maria Luísa, convida o jovem médico para jantar em sua casa. Garcia, no jantar, tem duas impressões — inconciliáveis, a princípio — sobre Fortunato. A primeira, positiva, é relacionada à sua receptividade, aos seus obséquios: “Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos”. A outra, negativa, diz respeito à frieza do olhar, já flagrada na cena anterior: “…os olhos [de Fortunato] eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias”. Assim, diante de Garcia, Fortunato continua um ser incerto, impreciso. Mas a frieza (do olhar) que induz a incerteza — infere Garcia sobre a conduta do outro — é em parte compensada pelos obséquios. Os obséquios, por sinal, irão atrair Garcia para a fundação, junto com Fortunato, de uma casa de saúde. Garcia, ainda no jantar, fica admirado com a mulher de Fortunato — “Maria Luísa […] possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove”. Esta primeira imagem de Maria Luísa, aos olhos de Garcia, irá destoar das imagens posteriores — entre algumas outras, as de uma mulher frágil, resignada, respeitosa e temerosa do marido.

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Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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