Machado de Assis e o sadismo (2)

Prosseguindo na análise do conto "A causa secreta", de Machado de Assis. CENA 2: Relata o encontro de Garcia com Fortunato no teatro
Machado de Assis, autor de “Dom Casmurro”
01/06/2010

Prosseguindo na análise do conto A causa secreta, de Machado de Assis. CENA 2: Relata o encontro de Garcia com Fortunato no teatro. Os dois já haviam se cruzado à porta da Santa Casa — e a figura de Fortunato fizera “impressão” ao jovem estudante de medicina. Na cena são apresentados já alguns traços da personalidade de Fortunato. Assistindo a um dramalhão [“drama que se alonga à custa de um excesso de lances trágicos e de tensões emocionais de toda sorte” — cf. o Houaiss], Fortunato, sentado perto de Garcia, tem “um singular interesse” pela peça: “Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver […] reminiscências pessoais do vizinho”. O narrador ainda acrescenta uma informação importante: “No fim do drama, veio uma farsa [“pequena peça cômica popular, de concepção simples e de ação trivial ou burlesca, em que predominam gracejos, situações ridículas, etc.” — cf. o Houaiss]”. Mas Fortunato deixa o teatro, seguido por Garcia, e, já na rua, andando devagar, cabisbaixo, pára às vezes “para dar uma bengalada em algum cão que dormia”. Em resumo, na cena são mostrados já os seguintes traços da personalidade misteriosa e sádica de Fortunato: a) ele tem um “singular interesse” pelo dramalhão a que assiste; b) sua atenção é redobrada nos “lances dolorosos” da peça; c) fica a suspeita, por parte de Garcia, de haver na peça “reminiscências pessoais” de Fortunato; d) Fortunato não se interessa pela farsa; e) dá bengalada nos cachorros que encontra, à saída do teatro, e os deixa “ganindo”. CENA 3: Trata do terceiro encontro de Garcia com Fortunato. Gouveia, empregado do arsenal de guerra, vizinho de Garcia, é apunhalado por um grupo de capoeiras. É recolhido na rua e conduzido para casa por Fortunato. Fortunato, que não conhecia Gouveia, que nunca estivera com ele, demonstrando extrema dedicação (“rara dedicação”, dirá o narrador, transmitindo, num discurso indireto livre, a opinião de Garcia), cuida do convalescente, este já em casa, arranjando-lhe um médico e tendo o auxílio de Garcia. Mas paira no ar uma suspeita sobre o verdadeiro motivo que leva Fortunato a ajudar Gouveia. O narrador, com uma perspectiva colada (ainda uma vez) à de Garcia, flagra os movimentos de Fortunato diante do ferido: “Olhou [Garcia] para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria”. Fortunato, assim tranqüilo e com a expressão fria do olhar, parece não justificar tanto a sua dedicação. Parece não se comover verdadeiramente com o estado do outro. A suspeita, assim, soa como uma convicção: Fortunato, diante de um Gouveia com uma ferida “grave” e gemendo, está dando vazão ao seu sadismo, ao prazer que sente com a dor alheia. Fortunato encena uma compaixão, é teatral. Se na cena anterior, a do teatro, a arte (do dramalhão) imita a vida, agora é como se a vida imitasse a arte. A ambigüidade de Fortunato leva Garcia, certamente com a anuência do narrador (e ainda a do leitor), a aceitar, a essa altura, que o coração humano é “um poço de mistérios”.

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Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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