Se me formulassem a pergunta: A literatura pode ajudar a uma reflexão sobre a questão da violência?, eu responderia: A literatura, mostrando cenas de impacto, de violência aberta ou dissimulada, pode, sim, ajudar as pessoas a refletirem sobre o problema. Por exemplo, quem lê O cobrador (1978), de Rubem Fonseca, conto que traz cenas das mais brutais da literatura brasileira de todos os tempos, pode refletir sobre os sentidos que estão por trás da “cobrança” do personagem. Não será difícil o leitor perceber que esses sentidos têm a ver com diferença de classes, mesmo porque o protagonista do conto, em vários momentos, sugere que é vítima de pessoas bem postas na sociedade (industriais, médicos, executivos, etc.), que lhe negam direitos. Ou seja, a violência do Cobrador decorre sobretudo de sua posição social, de sua frustração em não ter conquistado espaço na sociedade. Um outro dado importante nesse texto do autor de A grande arte: quem narra a violência a partir do lugar social dela, com a voz do sujeito produtor ou vítima da brutalidade, parece ter possibilidade de impactar mais. Um outro conto terrível de Fonseca é Feliz ano novo (1975). Quando os marginais estão assaltando a mansão na noite de réveillon, Pereba, um dos protagonistas do conto, vai para o primeiro andar e estupra uma mulher. O narrador diz: “A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga”. O narrador do conto é requintado em sua crueldade: tem muita vontade de matar uma pessoa pregando-a na parede com um tiro de Carabina 12. Tenta, mas não consegue, com um dos indivíduos que se encontram na mansão na hora do assalto: “Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone”. Mas o personagem se frustra: o indivíduo baleado não pregou na parede, como ele pensava: “Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma. Tem que ser na madeira, numa porta”. Entra então em cena Zequinha, outro dos protagonistas do conto. Zequinha, para o exercício macabro, escolhe uma outra vítima: “Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba. Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos”. Zequinha, após receber a arma, é também refinado em sua crueldade: “Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira. Eu não disse?, Zequinha esfregou o ombro dolorido. Esse canhão é foda”. Em 2002, quando ministrei para universitários um curso sobre o conto brasileiro da segunda metade do século 20, vi que os textos mais violentos, especialmente os de Rubem Fonseca, entusiasmavam os alunos de um modo muito especial. Notei que a violência era um tema que os cativava porque, a partir dele, podíamos discutir problemas importantes da sociedade brasileira contemporânea: exclusão, marginalidade, tráfico, repressão, mídia, consumismo (há personagens de Rubem Fonseca que se revoltam com as imagens de ostentação que a TV veicula), etc. No início de 2004, resolvi organizar uma antologia de contos abordando o tema.