Laços de família e o teatro da harmonia precária (1)

No clássico conto de Clarisse Lispector, os laços se esvaziam por força das convenções e, sobretudo, dos fingimentos que camuflam desavenças
Clarice Lispector, autora de “Água viva”
01/11/2021

O conto Laços de família, de Clarice Lispector, se constitui de quatro movimentos básicos. Primeiro movimento: A cena do táxi de Catarina com sua mãe, Severina. No momento em que as duas se chocam, é deflagrada a epifania. Catarina passa a refletir sobre sua condição de filha: “[…] sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe”. Se houve “um tempo” em que filha e mãe eram próximas, chegadas uma à outra, que laços agora sustentam a relação de Catarina com Severina? O processo epifânico instalado, o foco narrativo privilegia e/ou sonda mais detidamente a interioridade de Catarina e passa a revelar o modo como esta percebe a convivência (delicada, precária, melindrosa) com a mãe. Segundo movimento: A cena da despedida na estação. Severina já instalada no interior do trem, Catarina observa de repente (soa como uma descoberta) que a mãe está “envelhecida” e tem “os olhos brilhantes”. Severina à janela do trem, admirando-se no espelho, examinando o novo chapéu, e com um “ar excessivamente severo”, diverte Catarina. A filha, neste momento na estação, descobrir que a mãe está envelhecida, que tem olhos brilhantes, que deixa uma expressão severa no modo como se contempla no espelho — isto tudo revela algo fundamental no processo narrativo de Clarice Lispector. É quando o conhecido se torna suspeito. O familiar se torna estranho. O olhar que estranha e/ou cisma é que conduz à epifania, à iluminação a que chega a personagem por meio de indagações e/ou especulações acerca da própria existência, do estar-no-mundo. Ao descobrir uma mãe que lhe é estranha, Catarina deduz: “Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso”. Não se trata de desamor, mas, nos termos da personagem, de um convívio doloroso. Aqui a síntese do que são os laços de família no conto: são laços que podem se esvaziar por força das convenções e, sobretudo, dos fingimentos que camuflam desavenças, modos de sentir e de ser dessemelhantes. Isto já fica configurado no início do conto, com o desconforto de Antônio, marido de Catarina, com a presença, por duas semanas, da sogra na residência do casal. Nesse período, conforme o narrador, genro e sogra “mal se haviam suportado” e “os bons-dias e as boas-tardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia [Catarina] querer rir”. Porém, na despedida, a sogra faz esta observação para agradar o genro: “Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha ganha mais um”. Antônio neste momento “aproveita sua gripe para tossir”. É o teatro da harmonia precária.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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