O conto Laços de família, de Clarice Lispector, se constitui de quatro movimentos básicos. Primeiro movimento: A cena do táxi de Catarina com sua mãe, Severina. No momento em que as duas se chocam, é deflagrada a epifania. Catarina passa a refletir sobre sua condição de filha: “[…] sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe”. Se houve “um tempo” em que filha e mãe eram próximas, chegadas uma à outra, que laços agora sustentam a relação de Catarina com Severina? O processo epifânico instalado, o foco narrativo privilegia e/ou sonda mais detidamente a interioridade de Catarina e passa a revelar o modo como esta percebe a convivência (delicada, precária, melindrosa) com a mãe. Segundo movimento: A cena da despedida na estação. Severina já instalada no interior do trem, Catarina observa de repente (soa como uma descoberta) que a mãe está “envelhecida” e tem “os olhos brilhantes”. Severina à janela do trem, admirando-se no espelho, examinando o novo chapéu, e com um “ar excessivamente severo”, diverte Catarina. A filha, neste momento na estação, descobrir que a mãe está envelhecida, que tem olhos brilhantes, que deixa uma expressão severa no modo como se contempla no espelho — isto tudo revela algo fundamental no processo narrativo de Clarice Lispector. É quando o conhecido se torna suspeito. O familiar se torna estranho. O olhar que estranha e/ou cisma é que conduz à epifania, à iluminação a que chega a personagem por meio de indagações e/ou especulações acerca da própria existência, do estar-no-mundo. Ao descobrir uma mãe que lhe é estranha, Catarina deduz: “Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso”. Não se trata de desamor, mas, nos termos da personagem, de um convívio doloroso. Aqui a síntese do que são os laços de família no conto: são laços que podem se esvaziar por força das convenções e, sobretudo, dos fingimentos que camuflam desavenças, modos de sentir e de ser dessemelhantes. Isto já fica configurado no início do conto, com o desconforto de Antônio, marido de Catarina, com a presença, por duas semanas, da sogra na residência do casal. Nesse período, conforme o narrador, genro e sogra “mal se haviam suportado” e “os bons-dias e as boas-tardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia [Catarina] querer rir”. Porém, na despedida, a sogra faz esta observação para agradar o genro: “Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha ganha mais um”. Antônio neste momento “aproveita sua gripe para tossir”. É o teatro da harmonia precária.