José Lins do Rego – A obra e os críticos (3)

"Fogo morto" é composto de três partes, cada uma sendo protagonizada por um personagem
José Lins do Rego, autor de “Fogo morto”
01/01/2010

Fogo morto é composto de três partes, cada uma sendo protagonizada por um personagem. Na primeira, o foco recai sobre o ressentido José Amaro — mestre seleiro, homem branco, pobre, que repudia os ricos e é, de regra, ríspido com a mulher e a filha. Em vários aspectos ele se parece com o personagem que domina a segunda parte do romance, o proprietário rural, dono de engenho decadente, Lula de Holanda. Comparando-os, afirma Antonio Candido: “Como o Coronel Lula de Holanda, Zé Amaro tem um grande e doloroso sofrimento de inferioridade, do qual nascem a desconfiança com tudo e com todos e a doença do prestígio. Para ambos, acabou o mundo em que quereriam viver. Estão irremediavelmente perdidos na sua decadência, entre as suas mulheres que lhes fogem e as filhas murchando. Na casa de ambos campeia a loucura, e o ambiente é de tragédia”. A terceira parte do livro traz como destaque o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, o “Papa-Rabo”, como é apelidado pelos moleques. Um dos grandes personagens de José Lins — quixotesco, humano, digno. Um personagem que brada contra as injustiças, a má política, que condena corajosamente a conduta dos poderosos. É ainda Antonio Candido quem afirma: “Tem [como o Quixote, de Cervantes] o mesmo desprezo pelas condições materiais, a mesma coragem maluca e, sobretudo, a mesma capacidade de ver as coisas segundo a deformação do ideal, e não segundo o que realmente são”. Um elemento importante do Fogo morto é a construção de seu narrador. Um narrador, em terceira pessoa, que não intervém ou opina na narrativa, deixando os personagens ou as várias vozes se expressarem, através do discurso direto ou do indireto livre. Não intervém mas age nos bastidores — coordena, organiza o material narrativo de modo a fazer o leitor pensar, se posicionar, por choque ou justaposição das versões dos personagens, sobre a visão de mundo destes. Quem chama a atenção para isto é o citado (na coluna anterior) Eduardo F. Coutinho, que entende ainda que no livro se estabelece um outro choque, um outro contraste: aquele, não hierarquizado, entre a posição (de não expressar “pensamento próprio”) do narrador e as dos personagens. Contraste que desempenharia a função de “denunciar as ideologias” que as versões dos personagens passam, resultando num romance reflexivo, “questionador”.

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Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho