História e literatura

Paul Ricouer, na sua obra que aborda o tempo e a narrativa, tem uma página interessante sobre a natureza do texto do historiador que retrata a guerra
Segundo Ricoeur, a língua tem propensão ao “enigma, ao artifício, ao hermetismo, ao secreto”
01/05/2007

Paul Ricouer, na sua obra que aborda o tempo e a narrativa, tem uma página interessante sobre a natureza do texto do historiador que retrata a guerra. É de Aristóteles (Retórica) a idéia de que a elocução ou dicção tem a qualidade de “colocar diante dos olhos” e, deste modo, “fazer ver”. Assim, diz Ricouer, há um “efeito de discurso” na narrativa historiográfica que faz com que o passado se nos apresente como algo “pintado” diante dos nossos olhos. É a “ilusão de presença” do fato. E o historiador nos apresenta o fato utilizando-se desses efeitos discursivos para fazer com que a sua narrativa se carregue de “vivacidade de evocação”; se torne uma narrativa animada, viva. Essa “ilusão de presença”, essa pintura do fato para torná-lo vivo, é de ordem estética. Seria a utilização de recursos próprios da literatura na elaboração do discurso histórico. Este se valeria, portanto, de “efeitos de ficção”. Ricouer problematiza a idéia de que o historiador, por motivo de impessoalidade, deve sempre privar-se de seus sentimentos ao narrar os fatos. Observa que, no decorrer da história, há aqueles acontecimentos únicos que tornam difícil uma atitude de neutralização ética do historiador. Acontecimentos que não devem ser esquecidos, mas sim lembrados pela sua dimensão aterrorizante. E a neutralização ética talvez nem sequer “seja possível nem desejável” em casos assim. Exemplo disso é Auschwitz. Aqui, mesmo que o historiador exerça um distanciamento crítico na captação dos fatos, é necessário o recurso à “ilusão de presença” para tornar o acontecimento mais significativo. É necessário “pintar”, de novo “colocar diante dos olhos” esse acontecimento horrendo. O efeito de ficção, neste caso, não está a serviço tanto do agradar pela “vivacidade de evocação” como está a serviço da “individuação pelo horror”. O horror que esse acontecimento provoca em nós correria um risco de ofuscamento se não fosse o efeito de ficção. Este efeito é que torna o horror inesquecível. E ele foi usado amplamente pela historiografia do Holocausto. Isto porque, nessa historiografia, “a ficção dá olhos ao narrador horrorizado”; olhos “para ver e para chorar”. O efeito de ficção, portanto, aqui funciona para desenhar vivamente um acontecimento de horror envolvendo-o numa carga emotiva. O historiador, assim, para narrar o horrível, necessita de imaginação estética para melhor convencer. Ou melhor: para não deixar esquecer.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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