Guimarães Rosa (3) – Os nomes do diabo

E a relação de nomes com os quais Riobaldo se reporta ao Diabo no Grande sertão: veredas?
João Guimarães Rosa, autor de “Ave, palavra”
01/11/2006

E a relação de nomes com os quais Riobaldo se reporta ao Diabo no Grande sertão: veredas? Vale a pena repeti-la: “O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos…”. Recordo que em A hora e vez de Augusto Matraga já há uma relação engenhosa de alcunhas atribuídas ao destemido Joãozinho Bem-Bem: “o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa…”. E o que representaria o Diabo no romance? Responde Antonio Candido: “…nada encarnaria melhor as tensões da alma, nesse mundo fantástico, nem explicaria mais logicamente certos mistérios inexplicáveis do Sertão”. Para Riobaldo, o Diabo “vive dentro do homem” — ou é o “homem arruinado”, o “homem dos avessos”. Que justeza de imagem. E que beleza de definição! A linguagem do romance, por outro lado, é mesmo apaixonante. Parece certo que em Corpo de baile (depois desdobrado em três livros: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do sertão) e no Grande sertão é onde residem os principais inventos lingüísticos de Guimarães Rosa. São alguns exemplos que retirei do romance: “pois essezinho, essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: […] gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza”; “ele [o cavalo] sabia olhar redor-mirado a gente, com simpatias ou com desprezos”; “Otacília estava guardada protegida…”; “o xique-xique espinharol, cobrejando com suas lagartonas…”; “como o inimigo vinha: as listras de homens, récua deles…”; “acordei último…”; “e vi o mundo fantasmo…”. No Grande sertão: veredas, sociologicamente falando, é também muito rica a representação do jagunço. Afirma Antonio Candido: “…o jagunço de Guimarães Rosa não é salteador; é um tipo híbrido entre capanga e homem-de-guerra”. Daí — acrescenta o crítico — a aproximação com a Cavalaria: “O comportamento dos jagunços não segue o padrão ideal dos poemas e romances de Cavalaria, mas obedece à sua norma fundamental, a lealdade”. Outra coisa extremamente atraente na narrativa de Riobaldo são os “causos” que ele vai relatando. Em especial, o de Maria Mutema. Ela, como Nhô Augusto — o mal e o bem no indivíduo. Ela encarna o Demônio e, pela força do seu arrependimento após ter matado, com chumbo derretido no ouvido, o marido e tentado o Padre Ponte (que também termina morrendo), vai se transformando aos olhos do povo em santa. Guimarães Rosa é mesmo um autor admirável. A pergunta parece oportuna, neste momento em que se comemoram, respectivamente, 50 anos da publicação do Grande sertão e 60 do Sagarana: Como ele conseguiu escrever o que escreveu? Sobrelégios?…

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho