Em A hora e vez de Augusto Matraga há momentos de intensa poesia, como aquele em que Dionóra, a mulher abatida e desconsiderada de Nhô Augusto, se descobre amada por Ovídio Moura (personagem que, de pronto, remete ao poeta d’A arte de amar). Dionóra, em certo momento, num monólogo interior, idealiza: “E o outro [Ovídio] era diferente! Gostava dela, muito… Mais do que ele mesmo dizia, mais do que ele mesmo sabia, da maneira de que a gente deve gostar. E tinha uma força grande, de amor calado, e uma paciência quente, cantada, para chamar pelo seu nome: Dionóra…”. Quando Dionóra decide ir embora com Ovídio, a cena se passa diante de uma encruzilhada. Para o Quim Recadeiro, leal ao seu patrão Nhô Augusto, a decisão da mulher é errada, o caminho que ela opta “é outro”. Mas eis a beleza desconcertante da cena: Dionóra opta pelo caminho errado que lhe é certo, e deixa o caminho certo que lhe é errado. Explico melhor: o certo, para os códigos correntes, era a mulher, mesmo padecendo no casamento, de algum modo resignar-se e respeitar o marido (que, todavia, era perverso com ela); e o errado, também para os mesmos códigos vigentes, era ela seguir com o Ovídio (que, no entanto, a amava, assumindo-lhe a filha Mimita). Uma equação muito bem resolvida por Dionóra, quando anuncia para Ovídio: “…eu vou com o senhor, e fico…”. A história de Augusto Matraga me inquietou tanto, que, passados alguns anos de sua leitura, resolvi reescrevê-la — fiz o conto Sariema (referência à personagem secundária de A hora e vez…, aquela que aparece logo no início da narrativa, na cena do leilão). Sariema consta do meu livro O perfume de Roberta (2005) e está incluído na antologia Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa, que acabei de preparar, reunindo 40 autores do país, e que está saindo pela Garamond, do Rio de Janeiro. Quando parti para a leitura do Grande sertão: veredas, logo percebi no romance um ritmo parecido, um andamento próximo ao do conto Meu Tio o Iauaretê. Como este, havia um personagem monológico, agora numa narrativa comprida, compacta, falando para um interlocutor silenciado (sumido, por assim dizer). O fazendeiro e ex-jagunço Riobaldo, antes de tudo, talvez seja um dos personagens mais imaginosos da literatura de todos os tempos. O sertão simbólico, mas também concreto, que aparece no romance recebeu do crítico Antonio Candido, no célebre ensaio O homem dos avessos, a seguinte interpretação: “A experiência documentária de Guimarães Rosa, a observação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e pelo nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do rústico — tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro à matriz regional para fazê-lo exprimir os grandes lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte — para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade o Sertão é o Mundo”. Em Guimarães Rosa, com efeito, o sertão é sempre o mundo. A leitura de Candido, em parte, combina com a que Paulo Rónai fez de Riobaldo (em Três motivos em Grande sertão: veredas): “…esse Fausto sertanejo, ente inculto mas dotado de imaginação e poesia, ao passar revista aos acontecimentos de sua vida aventurosa, enfrenta seguidamente todas as contingências do ser — o amor, a alegria, a ambição, a insatisfação, a solidão, a dor, o medo, a morte — e relata-as com a surpresa, a reação fresca de quem as experimentasse pela primeira vez no mundo…”. Impressiona no Grande sertão a imagem que Riobaldo faz do Diabo. Efetivamente, o Diabo é uma preocupação imperiosa do personagem — presente e ausente, com ele o narrador-personagem fez e não fez o pacto.