Gabriel García Márquez possui a simplicidade de certos gênios. Mais uma vez, com Memória de minhas putas tristes, dá uma aula de romance, de relato bem composto, fluido. Conta uma boa história com um poder de envolvimento fora do habitual. Constrói um personagem intenso, com tanta vida que, ao final, ficamos com mais sede de viver. Um velho jornalista (mora numa fictícia cidade colombiana) que produz crônicas dominicais, para comemorar os seus noventa anos, decide passar uma noite “de amor louco” com uma adolescente virgem. Para a empreitada conta com a ajuda de uma antiga amiga — a cafetina Rosa Cabarcas, dona de um bordel (Cabarcas logo irá se impor como uma personagem importante, que reserva para os “bons clientes” de seu bordel “muitas tentações obscenas”, pois tem como filosofia de vida não crer na “pureza dos princípios”, o que a leva a sustentar, àqueles que vão resistindo a essas tentações — como é o caso, até decidir-se pela noite com a adolescente, do velho jornalista —, que “também a moral é uma questão de tempo”).
Mas de que trata o romance do Prêmio Nobel de 1982? Apenas a recordação de um velho cronista libidinoso, que desde cedo optou por conviver com prostitutas, por passar as noites em bordéis, tendo escapado de um casamento às vésperas de pisar no altar? A representação impiedosa da prostituição infanto-juvenil na América Latina? A hipocrisia de um regime (no romance, os tempos são de repressão, de muito rigor, do “Abominável Homem das Nove”, o censor pontual que adentra as redações dos jornais — os marechais travando “sua guerra editorial” — para impor as versões oficiais), a hipocrisia de um regime cujas lideranças pregam uma moral que, na verdade, não é a delas (basta lembrar que o bordel de Cabarcas é freqüentado pelo governador)?
O romance aborda tudo isso e avança admiravelmente para outras questões. A situação do protagonista é profundamente ambígua — angustia e anima. Angustia porque se trata de alguém bastante vivido que, inseguro, instável, sentindo o “peso imenso do século”, busca no cotidiano os sinais da morte (exemplo disso é a visão que tem da mãe, já morta há tempos, quando ele vai subindo as escadas de sua casa: “Então tornei a ver uma vez mais Florina de Dios, minha mãe, na minha cama que havia sido sua até sua morte, e me deu a mesma bênção da última vez que a viu, duas horas antes de morrer”). A solidão o estremece (o velho reencontra certo dia Casilda Armenta, uma ex-prostituta que já lhe tinha servido, e esta lhe diz algo decisivo: “Não há pior desgraça que morrer sozinho”). A inexorabilidade do tempo o assalta: “…comecei a medir a vida não pelos anos, mas pelas décadas. A dos cinqüenta havia sido decisiva porque tomei consciência de que quase todo mundo era mais moço do que eu. A dos sessenta foi a mais intensa pela suspeita de que já não me sobrava tempo para me enganar. A dos setenta foi temível por uma certa possibilidade de que fosse a última”). A inexorabilidade do tempo o assalta, mas não empaca o seu viver, não o impede de apostar na vida como fonte de desejo: “…quando despertei vivo na primeira manhã de meus noventa anos na cama feliz de Delgadina, me atravessou a idéia complacente de que a vida não fosse algo que transcorre como o rio revolto de Heráclito, mas uma ocasião única de dar a volta na grelha e continuar assando-se do outro lado por noventa anos a mais”. A paixão afinal o atinge aos noventa anos. E ele passa a gostar de sua adolescente adormecida. Adormecida? Eis o elemento fantástico da trama: o fato de a adolescente, desde o primeiro “encontro” com o velho jornalista, ficar na cama sempre dormindo (e aqui o intertexto com A Bela Adormecida, de Perrault, parece evidente). Funcionária de uma fábrica de camisas (prega botões), à noite, após o trabalho exaustivo, Delgadina vem ao quarto reservado no bordel de Rosa Cabarcas para permanecer com o velho até o raiar do dia (a sua sonolência de garota de “uns quatorze anos” remete à letargia própria de certos indivíduos na puberdade). Nas muitas noites em que dormem juntos ele jamais faz sexo com a garota — mas beija-lhe o corpo, admira-a com uma paixão antes nunca provada. E é assim que passa a amar desesperadamente um corpo adormecido, que só raramente lhe dá sinais de vida.
O insólito da situação acentua ainda mais a paixão do personagem (e lembro aqui que suas crônicas passam a refletir seu estado de ânimo, seu amor pela menina, e a despertar muita simpatia dos leitores — o que não deixa de sugerir um vínculo importante entre a escrita e a experiência). Por outro lado, uma narrativa com profusão de monólogos interiores, notadamente quando estes se prolongam, torna-se não raro (mas nem sempre, a depender da economia interna da obra) enfadonha — e é tudo que García Márquez evita em Memória de minhas putas tristes. No romance, os flashbacks, comedidos, não retardam tanto o desenrolar do relato. Os monólogos interiores, idem, vêm na medida exata, não são exaustivos. Assim, o presente da narrativa se precipita dinâmico, fluente, prendendo a atenção do leitor. O desfecho do livro, com o protagonista humanizado, amando muito e, por isso mesmo, apostando na existência, é de uma delicadeza — e injeta-nos energia, expande-nos também para a vida.