Felicidade clandestina: uma abordagem (4)

A prosa de Clarice Lispector é poética, com momentos que estranham a linguagem usual, corriqueira
Clarice Lispector em registro feito entre 1960 e 1965. Foto: Revista Manchete/Arquivo da Família
01/08/2024

Para concluir a abordagem de Felicidade clandestina, vejamos o narrador, o espaço, o tempo e a linguagem do conto. Narrador: trata-se de uma narradora rememorando uma situação de sua pré-adolescência. O que ocorreu no passado é sempre filtrado pelo olhar da narradora já adulta. Há outras narrativas de Clarice Lispector que utilizam esse procedimento, como é o caso do conto Medo da eternidade. E é um procedimento que lembra Machado de Assis no conto Umas férias. Espaço: a narrativa se passa no Recife. Trata-se de uma cidade ainda pacata — às suas ruas a narradora-menina associa extroversão, liberdade, um estar à vontade: “…eu recomeçava na rua a andar pulando, que era meu modo estranho de andar pelas ruas do Recife”. Uma referência espacial aponta a diferença de classes entre as duas meninas: a narradora-menina, cujo livro tão desejado está “completamente acima de [suas] posses”, mora num sobrado (“Ela não morava num sobrado como eu…”), enquanto sua colega vive numa casa — o que indica uma melhor condição de vida de alguém cujo pai é empresário (“dono de livraria”). Tempo: no conto o tempo cronológico é bem marcado: 1) a narradora-menina sabe que a colega possui o livro Reinações de Narizinho, 2) vem a promessa de empréstimo, 3) sucedem-se as “torturas” (os reiterados adiamentos do empréstimo), 4) ocorre a interferência da mãe da colega, 5) há a posse do livro e o regozijo da narradora-menina por ter a obra à sua disposição. Quando ocorre a interpretação subjetiva ou lírica dos fatos por parte da narradora, é suspenso o tempo cronológico e entra em cena o tempo psicológico: “eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam”; “o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira”; “no decorrer da vida, o drama do ‘dia seguinte’ […] ia se repetir com meu coração batendo”; “E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso”; “Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia”; “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante”. Linguagem: a prosa de Clarice Lispector é poética, com momentos que estranham a linguagem usual, corriqueira. A autora não raro traz frases inventivas, originais, que decorrem da interpretação subjetiva ou muito própria dos fatos. Clarice dizia que não lhe interessavam os fatos, mas a repercussão deles nos indivíduos. E isto tornou-se para a autora um princípio de escrita. Determinou a natureza intimista, introspectiva, de sua prosa.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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