Felicidade clandestina: uma abordagem (1)

Conto de Clarice Lispector gira em torno da felicidade, da inveja e da crueldade
Clarice Lispector em registro feito entre 1960 e 1965. Foto: Revista Manchete/Arquivo da Família
01/05/2024

O conto Felicidade clandestina, de Clarice Lispector, é estruturado inicialmente de forma antitética: de um lado, a narradora-menina (a narradora já é adulta, mas narra um episódio de sua pré-adolescência) e, do outro, uma colega que possui o livro Reinações de Narizinho. A narradora-menina é uma “devoradora de histórias” — e cria uma enorme expectativa para ler o livro de Monteiro Lobato, que a colega promete lhe emprestar e sempre adia o empréstimo dizendo que o livro se encontra com uma “outra menina”. Tem-se aqui um jogo entre indivíduo desejante e interdito, impedimento. Aos olhos da narradora-menina, a colega, retardando o empréstimo de algo tão ambicionado, é sádica, tem “talento para a crueldade”. A tensão entre as duas começa a se dissipar quando entra em cena uma terceira personagem: a mãe da colega da narradora-menina. A mãe é quem desembaraça a situação dirigindo-se à filha: “mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!”. A mãe que, avalia a narradora, deve ter feito neste momento uma “descoberta horrorizada da filha que tinha”. A mãe que, afinal, fala firme para a filha: “Você vai emprestar o livro agora mesmo”. E, voltando-se para a narradora-menina: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser”. De posse do objeto do seu desejo, a narradora-menina vai saboreando o livro aos pedaços, experiencia um “êxtase puríssimo”. E entende a felicidade como uma ato furtivo, secreto — clandestino. A felicidade que, se exteriorizada, ostentada, pode vir a causar desconforto, inveja — ou mesmo despertar “o talento para a crueldade” de alguns.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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