Bandeira e Belchior: poetas e cronistas

Na poesia ou nas canções da música popular brasileira, a crônica, o verso e a prosa se cruzam por meio das mãos habilidosas de dois gênios
Manuel Bandeira por Ramon Muniz
01/03/2022

A crônica é um gênero que registra, não raro, a circunstância, o cotidiano trivial. Com uma linguagem natural, espontânea, comunicativa, se aproxima do leitor do veículo ao qual está mais vinculada: o jornal. Às vezes humorada, é também lírica, reflexiva ou mesmo trágica. Fica perto da prosa poética, do conto ou mesmo do artigo político. Há textos poéticos que se aproximam bastante da crônica, rompendo a fronteira dos gêneros. Por exemplo, o conhecidíssimo Poema tirado de uma notícia de jornal, de Manuel Bandeira, é uma crônica em versos:

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da/ Babilônia num barracão sem número./ Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro/ Bebeu,/ Cantou,/ Dançou,/ Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

É uma crônica que também lembra um conto (ou miniconto), com a abertura de significados que propõe e com todo o seu poder de sugestão. Já dizia Walter Benjamin que metade da arte da narrativa está em suprimir, em não explicar os fatos narrados. Poema tirado de uma notícia de jornal é exemplo de excelente narrativa. Umas tantas letras da MPB também têm um aspecto visível de crônica. Que personagem marcante (um legítimo pobre-diabo) e que crônica significativa é a letra de Pequeno perfil de um cidadão comum, de Belchior:

Era um cidadão comum como esses que se vê na rua/ Falava de negócios, ria, via show de mulher nua/ Vivia o dia e não o sol, a noite e não a lua/ Acordava sempre cedo, era um passarinho urbano/ Embarcava no metrô, o nosso metropolitano/ Era um homem de bons modos: “Com licença”, “Foi engano”// Era feito aquela gente honesta, boa e comovida/ Que caminha para a morte pensando em vencer na vida/ Era feito aquela gente honesta, boa e comovida/ Que tem no fim da tarde a sensação/ Da missão cumprida// Acreditava em Deus e em outras coisas invisíveis/ Dizia sempre sim aos seus senhores infalíveis:/ “Pois é, tendo dinheiro não há coisas impossíveis”/ Mas o anjo do Senhor, de quem nos fala o Livro Santo/ Desceu do céu pra uma cerveja, junto dele, no seu canto/ E a morte o carregou, feito um pacote, no seu manto/ Que a terra lhe seja leve…

Trata-se de uma letra essencialmente narrativa, mas de forte tonalidade lírica, a exemplo dos versos “Vivia o dia e não o sol, a noite e não a lua” e “[…] o anjo do Senhor, de quem nos fala o Livro Santo/ Desceu do céu pra uma cerveja, junto dele, no seu canto”. Esse registro lírico e trágico do cotidiano, na voz de Belchior, é um dos momentos mais belos de nossa MPB.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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