Auto da Compadecida — uma interpretação do Brasil

O Auto da Compadecida (1955), de Ariano Suassuna, é um texto que se tornou popular
Ariano Suassuna, autor de “Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do sangue do vai-e-volta”
01/09/2007

O Auto da Compadecida (1955), de Ariano Suassuna, é um texto que se tornou popular, midiático, e que, por isso mesmo, parece despertar em certas pessoas do universo acadêmico/intelectual um olhar meio que inquisitivo, desaprovador. Mas é mesmo um texto extraordinário, um dos principais da moderna dramaturgia brasileira, e que mexe com valores e idéias dominantes de modo penetrante, agudo. Mexe profundamente com a Igreja. O eixo central da peça é o dinheiro, a cobiça. A Igreja, nas figuras do padre João e do bispo, é mostrada como uma instituição interesseira, mundana, materialista. A Igreja, na peça, é cômica, canastrona (na cena final, a do julgamento, o bispo será acusado pelo diabo de “simonia”, “falso testemunho”, “velhacaria” e “arrogância e falta de humildade de suas funções”, ou melhor, “arrogância com os pequenos, subserviência com os grandes”; o padre, por sua vez, será acusado das mesmas torpezas do bispo, acrescentado-se a “preguiça”). Os (proeminentes) personagens Chicó e João Grilo (este último um modelo acabado de pícaro) usam de expedientes astuciosos, enrolando os mais poderosos e conferindo ao texto toda a graça de que a arte de Ariano dispõe. Assim, rimos, especialmente com João Grilo, em boa parte da leitura do texto. Rimos do padeiro (patrão de João Grilo), que se mostra medroso, mandado permanentemente pela mulher. Rimos do enterro em latim do cachorro Xeréu. Rimos do interesse material do sacristão (que, além de “hipocrisia e auto-suficiência”, rouba a igreja), combinado com os do padre e do bispo. Talvez o sucesso do Auto esteja na qualidade de Ariano compor os diálogos, tão espontâneos que, às vezes, o leitor pensa estar ao vivo, personagem-testemunha da situação narrada. Ao mesmo tempo que apreciamos os expedientes astuciosos de João Grilo e Chicó, desprezamos a velhacaria do padre e a do bispo, protetores e bajuladores dos ricos. Um padre e um bispo extremamente hipócritas, desprezíveis. Mas tudo isso é elaborado com grande arte, num texto que, como já afirmei, amarra muito bem os diálogos. O mundo de Ariano, no Auto, é um mundo de valores flácidos, desagregados. Não há, na peça, um centro moral, ético. Afinal, o padeiro João é enganado pela mulher, que, no episódio do enterro em latim do cachorro, é trapaceada pela dupla João Grilo e Chicó, que enrolam ainda o padre e o bispo, que acabam roubando a boa fé da comunidade. Na cena do julgamento, “Manuel” (Jesus Cristo) e a Compadecida (Nossa Senhora) terminam sendo muito “misericordiosos”, protegendo todos os que estão sendo julgados, mandando dois terríveis criminosos (Severino e o Cangaceiro) para o céu e para o purgatório outros tantos pecadores (o bispo, o padre, o sacristão, o padeiro e sua mulher). A Compadecida, no julgamento, atua como advogada de todos, notadamente de João Grilo, que acaba recebendo o melhor benefício: voltar para a terra, para o lado do único que tinha ficado vivo e fora dessa enrascada toda — o seu companheiro de trapaças Chicó. Na peça, o mal é posto no lugar do bem, e o bem no lugar do mal: o diabo (o “Encourado”) aparece, na cena do julgamento, como a figura mais “digna” entre todas, por expor as principais verdades da conduta perniciosa de cada um dos que estão sendo julgados. Claro: o diabo cumpre o seu papel, lutando para levá-los para o inferno — o que não conseguirá, pois a misericórdia (ou os “arranjos”) da Compadecida, com a anuência de “Manuel”, é que termina salvando todos. Não havendo um centro moral, ético, o texto de Ariano se torna bastante atual, como expressão de uma sociedade que, nos costumes políticos, em certas instituições e suas mais destacadas expressões, tem se mostrado corrupta e corruptora. Vejo o Auto da Compadecida como uma arguta interpretação do Brasil, talvez no momento prejudicada na sua recepção crítica pela figura divertida de seu autor. Mas os despojados de espírito sabem que uma “aula-espetáculo” de Ariano, e por mais que o pensamento estético do autor de A pedra do reino pareça hipertrofiar a dimensão da arte popular, é sempre um momento inteligente e aprazível.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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