Aquela canção do Roberto, aquele conto do Rubem

Tratando de um amor não concretizado, a canção A namoradinha de um amigo meu, de Roberto Carlos, se tece entre uma atitude rebelde e outra resignada
Roberto Carlos
01/12/2006

Tratando de um amor não concretizado, a canção A namoradinha de um amigo meu, de Roberto Carlos, se tece entre uma atitude rebelde e outra resignada. O “eu” poético deseja o impróprio, o indevido. Deseja o proibido. E, sem recatos ou repressões, revela o seu objeto de desejo: “Estou amando loucamente/ a namoradinha de um amigo meu”. Ou seja, fere o código cultural que diz que não devemos desejar a mulher de ninguém, notadamente a de um amigo. Portanto, rebeldia, ruptura com a moral corrente. A confissão do “eu” poético tem dupla característica. Por um lado, parece ser imperiosa, irrefreável — por isso ele anuncia abertamente que quer o que não pode. Por outro, se faz de forma a parecer que o principal problema de sua existência é a encruzilhada em que está metido — gostar da namoradinha do outro. Ter isto como o grande problema da existência pode ser muito — mas, para um artista da importância de Roberto, parece pouco, pensando-se no país e no que ele estava passando naquele período (final dos anos 60, a ditadura militar engrossando). Começa, assim, a se esboçar a proposição mais propriamente resignada da canção. Como as coisas estão postas, a ênfase dada ao fato de alguém amar e, na mesma proporção, amargar tanto — tudo leva a crer que, para o personagem que fala, a vida será plena se, de repente, a namoradinha romper o envolvimento com o outro e, livre, cair em seus braços (ou, por outra, se ele “procurar alguém que não tenha ninguém”). Estará sanado o seu drama pessoal. Reposto o indivíduo, agora inteiro, o resto (o coletivo, o drama do próprio país) que “vá pro inferno” (para lembrar uma outra canção daquele tempo). No fim, a máxima dizendo que “O que é dos outros não se deve ter”, de viés econômico mas aplicada ao campo dos afetos, fecha a linha resignada da letra. Claro: a idéia aqui não é reduzir a produção de Roberto a isso, à arte não-participante, pouco problematizadora da realidade. Ele parece propor, sim, algumas atitudes inconformistas. De todo modo, em arte não raro se impõem as comparações. Também na época da ditadura Rubem Fonseca mostrava, num conto, que o que é dos outros, dependendo do grau de revolta, é possível, sim, se ter, ao colocar na boca do seu Cobrador, como ameaça aos que possuem e muito pouco dividem: “Estão me devendo […] cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo”.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho