E que recado mais rico o romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, nos dá! Paulo Honório, empreendedor, vigoroso, ríspido, confunde-se com a burguesia enquanto classe. “A construção de um burguês: eis o conteúdo da primeira parte” do livro, conforme Carlos Nelson Coutinho. Honório, reificador de coisas e pessoas, objetivando obsessivamente riquezas, atropela aqueles com quem se depara. É fabulosa a cena em que, pretendendo se casar (quer obter um herdeiro), parte para contratar Madalena: “Ora essa! Se a senhora dissesse que sentia isso [amor], eu não acreditava. E não gosto de gente que se apaixona e toma resoluções às cegas. Especialmente uma resolução como esta. Vamos marcar o dia”. Madalena, num primeiro momento, resiste: “Não há pressa. Talvez daqui a um ano… Eu preciso preparar-me”. Honório se irrita: “Um ano? Negócio com prazo de ano não presta. Que é que falta? Um vestido branco faz-se em vinte e quatro horas”. Casam-se, enfim. Senhor do mando, Honório é perverso com os empregados da fazenda São Bernardo: “Mandei-lhe [em Marciano] o braço ao pé do ouvido e derrubei-o. Levantou-se zonzo, bambeando, recebeu mais uns cinco trompaços e levou outras tantas quedas”. Ciumento de seus objetos, se angustia por Madalena ter outra visão de mundo (a mulher é atenciosa e afetiva com os moradores da fazenda). Sobre este aspecto, disse Antonio Candido: “A bondade humanitária de Madalena ameaça a hierarquia fundamental da propriedade e a couraça moral com que foi possível obtê-la. O conflito se instala em Paulo Honório, que reage contra a dissolução sutil de sua dureza”. Pressionada, desencontrada, Madalena se suicida, deixando o herdeiro. Resta para o proprietário a treva — símbolo de sua impossibilidade de “ver” o outro, de tentar se reconhecer como humano.
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