Anotações sobre romances (26)

Alice, de "Quarenta dias", de Maria Valéria Rezende, é uma personagem que tem muita força, notadamente nos primeiros momentos do livro
Maria Valéria Rezende, autora de “Recapitulação”
08/10/2015

Alice, de Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende, é uma personagem que tem muita força, notadamente nos primeiros momentos do livro, quando está dilacerada por sua transferência para Porto Alegre (“cidade pra onde me transplantaram à força”). Aqui o leitor sofre com a personagem, apega-se ao seu drama, comove-se com a sua solidão. Aqui o tema do “exílio”, da angústia do indivíduo desterrado, se impõe. Alice, já foi dito, é aposentada (tem duas aposentadorias), deu aulas de francês, esteve na França fazendo um curso, tem uma filha professora universitária que a leva para Porto Alegre (deixa-a num bem equipado apartamento na capital gaúcha antes de seguir com o marido para uma pós-graduação de seis meses na Europa; apartamento disponibilizado exclusivamente para Alice e que esta irá abandonar de uma hora para outra). Alice tem erudição, é apegada aos livros (que estão sempre presentes na sua vida, tornando-se um elemento importante, em várias cenas do livro, na caracterização da personagem). É, como qualquer brasileiro médio, bem posta na vida. Sendo assim, é de se perguntar: não soa estranho, não cede um tanto a força da personagem, a “descida” de Alice para a mendicância ou algo parecido? (Sim, Alice, em parte dos quarenta dias em que circula por Porto Alegre, vive à beira da mendicância ou mesmo como mendiga. A indumentária, o modo de se alimentar e de dormir nas ruas, num parque ou em prédios públicos, a convivência com moradores de rua — tudo isso a identifica com uma mendiga. E é a própria protagonista-narradora que anota, já para o fim do livro, que os moradores de rua são seus “iguais”). A sensação de “existir solta”, por si só, seria suficiente, justificaria a virada drástica na vida da personagem? A insatisfação da protagonista provocada por seu “transplante” para outro estado moveria mesmo a mudança, tão radical, de sua condição/identidade, teria mesmo carga para proporcionar a sua penúria (e Alice recebendo, repito, duas aposentadorias e tendo um bom apartamento à sua disposição) pelas ruas e noites frias de Porto Alegre? O romance, por uma via que muito provavelmente a escritora não desejava enveredar, não terminaria de algum modo reforçando o estereótipo do nordestino paupérrimo, miserável, socialmente inviabilizado? São questões para as quais não encontro respostas no momento. São inquietações sérias, responsáveis, de quem reconhece os méritos do romance de Maria Valéria Rezende.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho