Quarenta dias (2014), de Maria Valéria Rezende, paulista radicada há décadas na Paraíba (o texto de orelha informa que ela, em 1965, “entrou para a Congregação de Nossa Senhora, Cônegas de Santo Agostinho” e que sempre se dedicou à educação popular), traz uma protagonista curiosa — Alice, uma paraibana aposentada que, por conta da filha única casada com um gaúcho e que planeja engravidar, vai viver em Porto Alegre, preparando-se para se tornar “avó profissional”. Protagonista curiosa e que faz pensar no problema da identidade e de suas representações no romance brasileiro atual. Quarenta dias, é bom que se afirme logo, atesta a habilidade da autora em manusear as técnicas do romance, as suas ramificações; em saber conduzir bem as ações em sua disposição não-linear; em operar e intensificar o monólogo interior. Por esse viés, Valéria Rezende atrai bastante como romancista. Tem uma linguagem fluida, sem excessos ou cacoetes, contendo-se para não tornar jocosa a fala da paraibana, que é também narradora da história. O romance tem 32 capítulos/fragmentos, razoavelmente curtos, tomando uma, duas, três, quatro, cinco e até seis folhas (totalizando 245 páginas). A história de Alice, especialmente a de sua vida em Porto Alegre — onde ela passou quarenta dias circulando pelas ruas, sobretudo as da periferia; quarenta dias no “avesso” da cidade, por seus “buracos” e “rachaduras” —, é narrada, como indicado, em 32 capítulos/fragmentos que trazem ainda três elementos, sendo que o primeiro é praticamente invariável, o segundo apresenta algumas variações e o último, também com algumas variações, aparece intercalado entre capítulos. Os elementos são os seguintes: 1) uma epígrafe (uma frase ou trecho que a protagonista-narradora, leitora voraz, retirou de algum livro que lhe pertence ou que ela manuseou em sebo ou livraria por onde passou; um único capítulo, o quinto, exibe três epígrafes); 2) uma fala, às vezes abrindo, às vezes fechando os capítulos, às vezes abrindo-os e fechando-os, que Alice dirige à boneca Barbie (na verdade, à imagem da boneca que está estampada na capa do caderno onde a protagonista-narradora escreve o seu relato); 3) uma ilustração, constituindo o pórtico de 16 dos 32 capítulos, de um panfleto (publicitário, em sua maioria, mas há ainda recibos de lanchonete ou de padaria, uma simpatia e até mesmo um anúncio de uma cadela perdida) que a protagonista-narradora recolheu em suas andanças por Porto Alegre. No caso, o verso, ou mesmo a frente, do panfleto serviu para ela fazer anotações sobre o que observou.